Poesia,

Como queira o poema

Os últimos versos da argentina Alejandra Pizarnik mostram como a poeta recria a língua na sua intimidade

01mar2022 | Edição #55

Há uns dez anos eu escrevia num livro de amor “o mundo-dentro é tão real quanto os cem mil mortos e a execução de kadafi”; versos habeas corpus; afinal, quem escreve livros de amor quando o mundo está acabando? Ah, mas oxalá, amamos. Amamos, inclusive, e às vezes até à obsessão, a poesia e, de quebra, quem a escreve. Nesse amar me interessam os estropiados pela História: quantas obras foram rasuradas, apagadas, para que esta viesse à luz? Quantas palavras deixaram de ser escritas para que estas fossem escritas? Ao mesmo tempo também me interessa um outro movimento, o esvaziamento da História: ler uma obra e não deixar saltar contexto algum que não o literário. Parece fácil, numa primeira leitura, mas então vem aquela curiosidade de hienas esfaimadas e corremos a fazer uma “autópsia literária”, como definiu Laura Erber há uns dez anos num texto sobre Alejandra Pizarnik.

Florescimento

Nascida Flora Pizarnik Bromiker, em 29 de abril de 1936, em Buenos Aires, essa poeta escolheu e adotou o nome literário Alejandra na publicação de seu segundo livro. Seus pais, Elías Pozharnik e Rejzla Bromiker, eram judeus e emigraram para a Argentina de Rovene, hoje localizada na Eslováquia, em 1934. Seu pai trabalhava como cuentenik, ofício tradicional da comunidade judaica: vendia joias, roupas e eletrodomésticos de porta em porta; era ainda socialista, tocava violino e integrou uma orquestra.

Se Pizarnik desfrutouar de uma educação liberal, em seus Diários assegura que não teve exatamente uma infância, mas um período de angústia devido às comparações com sua irmã Myriam, a problemas ligados à sua aparência, além de ter asma e gagueira. Ainda havia o fato de todos os seus familiares que ficaram na Europa Oriental terem morrido no Holocausto, à exceção de um tio.

Em 1954, Pizarnik iniciou os estudos em jornalismo, filosofia e letras na Universidade de Buenos Aires, que abandonou três anos depois. Foi lá que conheceu Juan Jacobo Bajarlia, seu professor de literatura que a iniciou na leitura crítica, especialmente dos surrealistas. No mesmo período, teve aulas de pintura com Juan Batlle Planas. Foi quando todos os seus talentos artísticos afloraram. Em 1955, publicou seu primeiro livro de poemas, La tierra más ajena, que depois renegou, não o considerando parte de sua obra. Em 1956, publicou seu segundo livro, La última inocencia.

Tornou-se não só amiga, mas foi apadrinhada (e admirada) por diversos escritores da época, como Oliverio Girondo, Silvina Ocampo, Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges, Olga Orozco, Roberto Juarroz, entre outros. A partir daí, passou a escrever intensamente e a assumir essa personagem poética segundo o ideal de

fazer versos a cada minuto do viver
fazer do próprio corpo, o corpo do poema.

Além da vasta produção poética e em prosa, Pizarnik escrevia um diário com seus anseios literários, à maneira de Franz Kafka.

Entre os anos 1960 e 1964 viveu em Paris, estudou história da religião e literatura francesa como aluna especial na Sorbonne, escreveu para várias revistas, além de traduzir Aimé Césaire, André Breton, Antonin Artaud, Marguerite Duras, Pablo Picasso, Paul Éluard, William Shakespeare, entre outros. Nesse período conheceu e ficou amiga de grandes escritores como Georges Bataille, Julio Cortázar, Simone de Beauvoir e Octavio Paz, que escreveu o prólogo de seu livro Árvore de Diana. De volta a Buenos Aires, publicou seus três últimos livros de poemas, Os trabalhos e as noites, Extração da pedra da loucura e O inferno musical, e a prosa La condesa sangrienta.

Alguns parágrafos biográficos e parecemos estar diante de uma mulher de intensa vida social; no entanto, Pizarnik mesclava momentos de intensa euforia à melancolia mais profunda e a perturbações mentais angustiantes, tomava anfetaminas e ansiolíticos e esteve internada em hospitais psiquiátricos diversas vezes. Com o passar dos anos, foi se tornando cada vez mais reclusa e intensificando seu projeto poético. Não foram raras as vezes em que escreveu em seu diário que era preciso abrir mão de uma vida real para se re-construir no texto. Na madrugada de 25 de setembro de 1972, enquanto passava uma temporada fora da clínica psiquiátrica onde estava internada, tomou uma dose excessiva de barbitúricos e morreu.

Re-criar

Após dez anos de sua morte apareceu o livro póstumo, Textos de sombra, editado por suas amigas Olga Orozco e Ana Becciu, quando se ampliaram a publicação e estudos críticos de sua obra, mitificando seu nome pelo público de língua hispânica. No Brasil, embora já houvesse traduções independentes e artesanais e dissertações sobre sua poesia desde 2010, foi apenas em 2018 que finalmente pudemos ter sua poesia traduzida e comercializada para o grande público, quando a Relicário publicou Árvore de Diana e Os trabalhos e as noites, e agora em 2022 com seus dois últimos livros, A extração da pedra da loucura e O inferno musical, em edições primorosas, todos com tradução de Davis Diniz e textos de apoio.

Pizarnik foi essa pessoa fabulosa, escandalosa e sua vida não nos poupou “bisturis poéticos”, o que abriu um caminho para que autópsias literárias fossem feitas: surrealista, mística, maldita, louca, suicida. Mas o que encontramos, de fato, quando lemos Alejandra Pizarnik (ou “piknik”, como intimamente a chamo)?

Primeiro, encontramos o amor. Seus poemas se abrem para outros sentidos e outras formas, tal como a própria poeta propôs no texto “El poema y su lector”: “Somente o leitor pode terminar o poema inacabado, resgatar seus múltiplos sentidos, lhe agregar outros novos. Terminar (o poema) equivale, aqui, a dar vida novamente, a re-criar”.

Ao criarmos intimidade com a escritura pizarnikiana, testemunhamos uma apaixonada obsessão pela palavra, uma incessante reflexão sobre as possibilidades e limites da linguagem; a palavra oscila entre sua condição de destruidora das coisas e sua condição radicalmente invocatória, pela possibilidade de ser ela a coisa mesma. Essa leitura por si só já é um turbilhonamento: tudo passa pela linguagem, pela linguagem estruturamos nosso pensamento, refletimos e nos colocamos em ação.

Segundo Ivonne Bordelois, em artigo para o La Nación, a poeta soube arrancar do idioma uma entonação desconhecida, que tem uma intensidade de maneira inimitável: “Alejandra realiza uma operação estranha com o espanhol, língua sólida, sonora e solar em sua matéria-prima, que com ela se torna um idioma vacilante e noturno, frágil e misterioso, cheio de ardis e vislumbres, muito mais sutil e profundo do que costuma ser (…)”. Anos antes, Octavio Paz percebeu essa dobra na língua operada por Pizarnik, como diz no prólogo de Árvore de Diana, “[a poeta] leva a cabo uma cristalização verbal por amálgama de insônia passional e lucidez meridiana em uma dissolução de realidade submetida às mais altas temperaturas”.

Encontramos essa voz única já em seus primeiros livros, nos quais seu projeto poético era que os poemas

se digam muito exatamente
terrivelmente exatos

E tal é sua precisão ao lidar com a inflexão única de cada palavra ao mesmo tempo que uma espécie de eletricidade se alastra, alcançando uma escritura de rara exatidão. Isso está presente em Árvore de Diana e Os trabalhos e as noites, e mesmo depois nos textos mais fragmentados e próximos à prosa poética como Extração da pedra da loucura e O inferno musical, em que sua intenção é que “os poemas se escrevam como queiram”, e esse impacto central permanece.

Em seus dois últimos livros, Pizarnik batalha sem cessar com uma “linguagem partida a pauladas”, em um processo de “pouco a pouco reconstruir o diagrama da irrealidade”, como diz em O inferno musical. E, se isso significa deixar que o poema “se escreva como queira”, também significa que não tem total controle do fazer poético. À medida que afloram mais “sombras com máscaras”, um discurso alheio vai se impondo, como se vê em Extração da pedra da loucura: “Falo como em mim se fala. Não minha voz obstinada em parecer uma voz humana, mas a outra que atesta que não cessei de morar no bosque”. Essa “outra”, habitante do bosque e antagonista da menina inocente refugiada na cabana, é uma imagem de linguagem poética autônoma. Como vemos também na figura da dama solitária, essa “outra” moradora do bosque bosque não é casa e, portanto, não oferece segurança nem pode ser controlado: “As forças da linguagem são as damas solitárias, desoladas, que cantam através da minha voz que escuto ao longe”.

Ao criarmos intimidade com seus poemas, testemunhamos uma obsessão pela palavra

Através desse alheamento, podemos ouvir o subtexto de Extração da pedra da loucura: a menina em sua cabana tentando trazer para junto de si as palavras, tentando arrancá-las, mas só pode dizer algo como “perdi minha exatidão, as damas solitárias se apoderaram da minha fala…”. E as damas solitárias, as forças da linguagem, são avassaladoras, destroem e conjuram:

Escuto minhas vozes, os coros dos mortos. Aprisionada entre as rochas; incrustada na fenda de uma rocha. Não sou eu a eloquente: é o vento que me faz esvoaçar para que eu creia que estes cânticos de azar que se formulam por obra do movimento são palavras vindas de mim.

Entre o conflito de escrever poemas “terrivelmente exatos” — e alcançando uma essencialidade poética quase matemática e, por fim, cedendo ao seu “surrealismo inato”, sua atração em deixar que o poema “se escreva como queira” e se esforçando para obter o impossível amálgama entre “precisão e fluidez, claridade e obscuridade” (como comenta Davis Diniz no posfácio de O inferno musical), Pizarnik cai no centro do poema/ outro poema/ centro do centro/ ausência: o fracasso de todo poema.

E é isso que amamos, suas chaves poéticas, da escritura, são infernais de tão comoventes, dilaceram. Porque também fracassamos, re-criamos a nossa língua em intimidade sem precisar fazer nenhum escrutínio pessoal porque aqui os poemas se alçam de uma tal maneira que só podemos voar e, enfim cair, nos estatelar e levantar a voz, muito exatamente, como queira o poema ainda que de uma intimidade nômade, de pura errância e de um escândalo que é doído.

Quem escreveu esse texto

Nina Rizzi

Historiadora e poeta, escreveu Nina: Uma história de Nina Simone (Pequena Zahar, 2022) e Elza: A voz do milênio (VR Editora, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.