Poesia,

Impurezas da ausência

Livros centrais da argentina Alejandra Pizarnik, poeta morta prematuramente em 1972, são editados pela primeira vez no Brasil

01jun2018 | Edição #12 jun.2018

A poesia é sobretudo necessária para quem já a tem. Trata-se, pois, de requalificá-la a cada novo poeta lido, quando não espantar-se com um caminho poético que escapa a expectativas já direcionadas pela familiaridade de alguma tradição. Mas me pergunto se em nossos dias essa familiaridade se conserva, de modo a sancionar como necessária a voz lírica, nos moldes em que ela se constituiu modernamente, e agora posta à prova dos instantâneos da mídia, dos costumes e das conexões digitais. O símbolo poético, atavicamente definido no movimento básico de levar o sensível à significação investigada, sustenta-se ainda nessa forma de aspiração, ou viverá de silêncios e desistências, numa órbita viciosa do sentido ausente? 

Tais observações me ocorrem ao ler os dois livros recém-editados da poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972), Árvore de Diana (1962) e Os trabalhos e as noites (1965). São livros centrais entre os seis que publicou, e a edição bilíngue favorece sobretudo o reconhecimento da música no canto original da língua irmã. Mas o desafio dessa poesia não está propriamente nas aparas das melodias conquistadas, mas no obsessivo silêncio que ronda e trava a perseguição do objeto buscado, instado a diluir-se sistematicamente por força do essencialismo de quem busca. 

Alejandra Pizarnik é poeta essencialista: vale-se de teimosas e fugidias ferramentas para a construção da solidez impossível diante da morte. Seu desígnio de “tecer com o tormento da ausência” é um mote para a articulação de símbolos obsessivos materializados em noite, pássaro, coração, vento, espelho, flor e outros mais que indiciam uma penosa experiência de busca — limite que na lírica moderna se dá como afirmação de uma consciência poética. À margem de experiências declaradas no âmbito sensível da vida cotidiana (que possibilitou a um Bandeira colocar a poesia em nosso colo), a matéria da poeta é a experiência mais viva possível do símbolo como símbolo, na rarefação do estado de espírito que Drummond conheceu e atribuiu a “quem vive sua morte” (“Nudez”). 

Sublimação e sombra

A poeta mereceu de Octavio Paz o suntuoso “Prólogo” de Árvore de Diana, no qual o crítico e poeta mexicano dá vazão à sua tendência de fundir imagens e conceitos, especulando imaginativamente o dicionário das palavras da poeta, da sua árvore que “não tem raízes”, sendo seu caule “um cone de luz ligeiramente obsessiva”. Trata-se de um tributo à poesia de Alejandra e à poesia dele mesmo, ao que há de vivencial no “foco central chamado poema”, pureza da metalinguagem em desafio ao que seriam preconceitos críticos da “ilustração contemporânea”. Vejo aí uma defesa até certo ponto injusta para com a poeta que ele celebra: há nesse passo alguma diminuição do drama efetivamente sofrido por Alejandra, em sua perseguição vital e expressiva do que lhe seja essencial. A sublimação que Paz promove em nome de um triunfalismo luminoso dissolve, justamente, as sombras duramente conquistadas — e nessa condição belamente cantadas e vividas pela poeta. Veja-se que no “salto para a alba” há também “a tristeza do que nasce”. Aliás, a palavra “alba” — mas não apenas ela — reforçou em mim a sensação de certa vizinhança da poeta argentina com nossa poeta Orides Fontela (Alba é um de seus livros), que frequenta seus símbolos essenciais no espaço alto e raro de uma estoica e sábia serenidade. 

Alejandra Pizarnik é poeta essencialista: vale-se de teimosas e fugidias ferramentas para a construção da solidez impossível diante da morte

Em Árvore de Diana, habitamos um nominalismo mágico que ganha força, por exemplo, quando apoiado numa delicada interlocução com o ausente, este ser também acumpliciado e apropriado pela evanescer do sujeito que o nomeia (“Cuidado comigo, amor meu”). Disparado por um desejo sem nome, o verso ou discurso atira-se e mira-se em si mesmo, ao mirar o outro. O ser do outro é também o duplo de si mesma, em meio ao “medo de ser duas”.  Outra fonte de força pode estar na plasticidade das telas  de artistas (Wols, Goya, Klee), nas formas da natureza: os versos do poema 23 “a rebelião consiste em olhar uma rosa/ até pulverizar os olhos” constituem uma das múltiplas sínteses desse gesto poético essencial que vive de anunciar para romper a visão mesma do símbolo, nomeação da ausência. Nesses 38 poemas, apenas numerados, subsiste uma íntegra percepção conjuntiva, uma sequência cujo critério de rigor está sempre nas cercanias da mudez e do silêncio. Cada poema é uma habitação solitária e sacrificial: “construíste tua casa”, “terminaste sozinha/ o que ninguém começou”.  Nas epifanias súbitas, efetivamente mágicas (“quando vires os olhos/ que tenho nos meus tatuados”), está a partilha maior da poesia de Alejandra.   

Em Os trabalhos e as noites, os poemas ganham títulos e, algo maior, especificação do “lugar da ferida”, moldada ainda pelo momento seguinte do silêncio, da mudez e da morte. Nas vivências seguintes a um maiúsculo NÃO (“Relógio”), haverá a construção e a desistência da espera, o temor do “impuro meio-dia branco”, o jardim petrificado. As “grandes palavras” são agora e nunca: “ainda não é agora/ agora é nunca/ ainda não é agora/ agora e sempre/ é nunca”. A progressão negativa que me parece haver nos poemas desse livro desemboca em “Cair”, onde se lê “Alguém sonhou muito mal,/ alguém consumiu por equívoco/ as distâncias esquecidas”: não há aqui a despedida dos caminhos já feitos nos saltos à alba? Ou ainda, nos poemas finais “Crepúsculo”, “Moradas” e “Mendiga voz”, marcam-se disposições sombrias que parecem tão lúcidas como definitivas: “um desejo de aqui/ uma memória de lá”; uma morada “no copo inalcançável,/ na sede de sempre”; e o fecho, especialmente belo: “E ainda me atrevo a amar/ o som da luz em uma hora morta/ a cor do tempo em um muro abandonado.// Eu meu olhar eu perdi tudo./ É tão longe pedir. Tão perto saber que não há”.  Declinam-se aqui os símbolos da perda, a intransitividade de um distante pedir, de um não-haver instalado convictamente na consciência. 

A desistência de viver tomada como forma de ação não pode deixar de soar na construção histórica da poesia de Alejandra Pizarnik. Podemos nada saber de sua vida. Não há como não saber de sua poesia edificada em desvãos, acusando os símbolos em sua ausência, cumprindo o canto como um silêncio no avesso do silêncio. 

Quem escreveu esse texto

Alcides Villaça

Poeta e ensaísta, é autor de Viagem de trem (Duas Cidades).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.