Poesia,

Um corpo estranho

Grande nome da poesia do século 20, o peruano César Vallejo ganha nova tradução brasileira

01mar2022


O poeta César Vallejo, “baudelairiano até a raiz dos cabelos”
[Isadora Bertholdo e Giovanna Farah sobre fotografia (Archivo Juan Domingo Córdoba/Reprodução)]

No Peru, o poeta César Vallejo está cunhado na moeda de vinte novos sóis. Ele dá nome a um time de futebol, o Club Deportivo Universidad César Vallejo, e é lido nas escolas como poeta nacional. Em sua obra, Vallejo fez miséria da lógica. Uniu mundos, combinando referências do catolicismo a uma verve marxista. Venerado por leitores de poesia nos países hispânicos, anda distante das livrarias brasileira até que dois escritores, Gustavo Pacheco e Fabrício Corsaletti, traduziram a coletânea Poemas humanos, lançada em edição bilíngue pela Editora 34. O livro sintetiza o eu lírico ambíguo de Vallejo, que buscou a metafísica na miséria.

Nascido em 1892, no vilarejo de Santiago de Chuco, no norte do Peru, Vallejo mudou-se para Paris ainda em 1923. A despeito do dandismo, emulado na fotografia estampada na capa do livro — que também ilustra a desta revista —, nunca foi um aristocrata, como suas roupas fazem parecer. Neto de mulheres indígenas, era mestiço e passou a vida na pobreza, tema central da obra que construiria fora de seu país. Era o mais novo de onze irmãos, criados numa família católica. Inicialmente, seus pais queriam que ele fosse padre — daí as referências bíblicas em sua poesia.

Vallejo tentou se formar em letras e medicina, mas teve de abandonar os cursos para trabalhar. Chegou a ser ajudante de caseiro em um engenho de açúcar, antes de se tornar professor primário em Trujillo e Lima. Pouco depois, regressou a Trujillo, onde aconteceria um episódio central — e, para nós, obscuro — de sua biografia.

Em 1920, participou de uma revolta popular que acabou no incêndio da casa de uma família rica. Há muitas versões para o ocorrido. Fato é que Vallejo foi acusado, para alguns injustamente, de ter sido o mentor do crime. Foi preso num calabouço e lá ficou por 112 dias. Do cárcere, ele comporia sua obra mais vanguardista, Trilce, de 1922, que rompeu com o modernismo e causou um furacão na poesia latino-americana.

Poemas humanos, de 1939, foi publicado postumamente. Os poemas datam da época em que Vallejo morava na Europa, nos últimos anos de vida. Em Paris, viveu com Georgette Philippart, tendo sofrido com a pobreza e a fome. Ao mesmo tempo, foi na capital francesa que se encontrou com alguns dos maiores artistas da época, como os poetas Jean Cocteau e Antonin Artaud, além de Picasso, que desenhou um famoso retrato de Vallejo.

No mesmo período, o escritor passou a ter interesse pelo marxismo e visitou a União Soviética quatro vezes. Por causa de sua posição política, foi expulso da França, em 1930, passando a viver em Madri. Pouco tempo depois, conseguiu permissão para retornar a Paris, onde se engajou à distância na causa republicana durante a Guerra Civil Espanhola. O momento histórico motivaria a escrita de España, aparta de mí este cáliz, sua obra mais política, publicada em 1940, também postumamente. Da prosa, destacam-se a novela social El tungsteno e a coletânea de crônicas Rusia en 1931, ambos de 1931.

Vallejo morreu em Paris, aos 46 anos, na absoluta pobreza, de causa até hoje incerta. Para a professora Laura Hosiasson, que dá aulas de literatura hispano-americana na Universidade de São Paulo, a torrente passional da obra de Vallejo, advinda da penúria que o autor enfrentou, não está acima de seu trabalho formal. “Os livros dele fazem com que o leitor fique repelido e impelido. Isso tem a ver com a proposta de elaborar uma nova relação com a língua, que nessa poesia não serve para dizer ou representar”, ela diz.

Ainda que menos radical, Poemas humanos traz o desejo calcado em Trilce. A língua não está de mãos dadas com a lógica. É, ao contrário, criadora de imagens súbitas, às vezes incoerentes, que propõem, como disparates, novos sentidos à obra, como no excerto deste poema sem título.

Um homem passa com um pão no ombro
Vou escrever, depois, sobre meu duplo?
Outro senta, se coça, tira um piolho do sovaco, mata-o
Como é que eu vou falar de psicanálise?

De repente, “um homem passa com um pão no ombro” e logo um poema de aura surrealista se desvela, com uma descontinuidade que sugere intimidade com a forma cubista. Quando escreve Trilce, Vallejo nem sequer saíra do Peru. Era vanguardista antes de conhecer as escolas europeias.

Vanguardista sem vanguarda

Samuel Titan Jr., professor de teoria literária da usp e editor da coleção na qual saíram os Poemas humanos, a Fábula, da Editora 34, conta que Vallejo apontou novos caminhos para a poesia sem se filiar a nenhum grupo de artistas. “Ele é o poeta vanguardista que não consegue participar da vanguarda. É um corpo estranho em todo lugar onde você tenta encerrá-lo. Acho que as vanguardas, na verdade, são muito internacionais. Na França, acho que é digna de nota a incorporação das artes plásticas à sua poesia”, ele afirma.

Quando escreve ‘Trilce’, Vallejo nem sequer saíra do Peru. Era vanguardista antes de conhecer as escolas europeias

Para os tradutores, a manutenção da cadência rítmica foi um dos principais desafios. O uso da ordem direta nas orações, o emprego da linguagem coloquial e o aparente predomínio do verso livre enganam quem pensa haver em Vallejo certo desapego formal. A leitura atenta permite concluir que a combinação entre decassílabos e hexassílabos é estruturante em Poemas humanos. Há ainda casos de decassílabos ocultos ou encavalados. Um exemplo pode ser encontrado na quarta estrofe do poema que se inicia por “Hoje eu gosto da vida muito menos”. Analisemos o verso “Que de fato sofri nesse hospital que fica aqui ao lado”. Até a palavra “hospital” contamos dez sílabas. Ao mesmo tempo, lendo a frase na ordem inversa, até “nesse”, temos novamente dez sílabas.

“Vemos no livro uma recuperação de aspectos formais do século de ouro espanhol. Podemos ver nas antíteses usadas e nessa alternância entre hexassílabos e decassílabos a chamada silva, forma muito usada naquela época”, explica Pacheco, que assina a apresentação e as notas. Vallejo não deixou muitas pistas sobre como escrevia, mas Corsaletti aponta um padrão criativo: “Ele cria um plano cotidiano, às vezes até narrativo, e, a partir dessa circunstância, ele trabalha essa realidade até deformá-la, o que muitas vezes gera um sentido existencial aos poemas”.


Vallejo em foto de c. 1920

Ainda que seja considerado um dos grandes nomes da poesia latino-americana do século 20, Vallejo foi pouco traduzido e lido por poucos no Brasil. Haroldo de Campos encantou-se pela experimentação em Trilce. Já Ferreira Gullar e Thiago de Mello, um dos tradutores do poeta, falecido em janeiro deste ano, admiraram a combinação entre lirismo e engajamento político. De modo geral, Vallejo é tido por aqui como um autor hermético, num país que não costuma prestigiar os autores latino-americanos. “A gente não tem noção no Brasil, mas Vallejo é um poeta tão ou mais popular que Neruda”, diz Pacheco.

De acordo com Hosiasson, podemos identificar três fases da obra do poeta. Em Los heraldos negros, o simbolismo se funde a leituras modernistas. Depois, no livro Trilce, há a experimentação total da linguagem. Poemas humanos seria a síntese de um poeta sempre político, mas nunca reivindicativo — ou mesmo panfletário. Vallejo combinava a metafísica à vida miúda. “Ele não dissocia o concreto e a metafísica. Ele fala das cuecas, do dinheiro, da lagartixa e, de repente, está falando da morte, do sofrimento humano. É somente no todo do poema que o leitor capta o sentido”, observa a crítica.

Parado numa pedra,
desempregado,
imundo, horripilante
às margens do Sena, ele vai e vem.
Do rio brota então a consciência,
com pecíolo e arranhões de árvore ávida;
do rio a cidade sobe e desce, feita de lobos abraçados.

O desempregado a vê no ir e vir,
monumental, trazendo seus jejuns em sua cabeça côncava,
no peito seus piolhos puríssimos
e embaixo
seu pequenino som, o de sua pélvis,
calado entre duas grandes decisões
e embaixo,
mais embaixo,
um papelzinho, um parafuso, um fósforo…

O trecho do poema acima, também não nomeado, unifica algumas características do eu lírico de Vallejo. Primeiro, o autor se refere aos desempregados da crise de 1929, podendo estar falando de si. O desempregado está na rua, portanto junto ao povo, e sua imobilidade (“parado numa pedra”) se contrapõe ao vai e vem do Sena, na cidade onde as pessoas sobem e descem. Em seguida, a substância da cidade é atingida por uma imagem insólita (“feita de lobos abraçados”) e, finalmente, como se estivesse curvado ao chão, o eu lírico se detém na vida miúda e reticente (“um papelzinho, um parafuso, um fósforo…”).

Para Titan Jr., não se pode negar que Vallejo é herdeiro da tradição da poesia moderna. Para ele, o poeta foi influenciado pelo nicaraguense Rubén Darío e pelo francês Charles Baudelaire. “Quero nuançar essa ideia de que o Vallejo rompe com tudo o que era a poesia hispano-americana. Gosto de pensar que ele está levando adiante uma abertura sintática e imagética que já está em curso na obra do Darío”, explica. “Ao mesmo tempo, a foto que está na capa não existiria sem as fotos do Baudelaire. Ele é baudelairiano até a raiz dos cabelos. Ele tem fascínio pela massa e certa repulsa também.”

No poema “Saudação Angélica” — outro nome dado para a oração da Ave-Maria —, o sujeito lírico mostra-se atravessado pelo desejo da construção do ideal bolchevique, acima de qualquer nacionalismo. Para tanto, emprega, como num objeto geométrico, diferentes nacionalidades.

Eslavo com relação à palmeira,
alemão de perfil ao sol, inglês sem fim
francês em rendez-vous com os caracóis,
italiano a propósito, escandinavo aéreo,
espanhol de puro coice, qual o céu
espetado na terra pelos ventos,
qual o beijo limítrofe nos ombros

Vallejo é comparado com poetas modernos de diferentes países, ainda que sua obra seja peculiar e seu “sotaque esteja preso em seu sapato”, como diz um dos Poemas humanos.

Drummond

No Brasil, a aproximação imediata se dá com Carlos Drummond de Andrade, que era leitor de Vallejo, segundo Hosiasson. O engajamento político e o tom meditativo do poeta peruano logo fazem lembrar os livros A rosa do povo, de 1945, e Claro enigma, de 1951. Vallejo também desce a uma “vida menor” com aspiração universal. Não à toa, em “Telúrica e magnética”, um dos poucos poemas em que o Peru é descrito, o eu lírico também clama pelo “mundo”, mas não cede ao tom nostálgico de Drummond e sua Itabira.

Serra do meu Peru, Peru do mundo,
e Peru ao pé do globo, estou contigo! […]

Rotação de tardes modernas
E finas madrugadas arqueológicas!
Índio depois do homem e antes dele!
Entendo tudo em duas flautas
e me faço entender com uma quena!
Quanto ao resto, estou me lixando!…

Para parte da crítica, lembra Pacheco em uma das notas, qualquer enaltecimento à terra natal deve ser visto como ironia. Afinal, Vallejo era poeta desgarrado e sua complexidade poderia não lhe permitir tudo entender “em duas flautas” e se fazer entender “com uma quena”.

Desse modo, a “Mecânica sincera e peruaníssima/ a do morro vermelho!”, como ele diz na primeira estrofe, só é peruaníssima em relação ao outro. Sempre ambígua, a experiência coletiva se confunde ao sofrimento do eu lírico, que faz uma confissão num outro poema sem título: “Quem sabe, sou um outro; indo na aurora, outro que marcha”.

Em 2007, Vallejo, poeta peruano e de todo o mundo, foi homenageado pelo Judiciário do Peru com uma exposição em sua homenagem, como forma de desagravo pela prisão supostamente injusta que sofreu. Em “Pedra negra sobre uma pedra branca”, seu poema mais famoso, Vallejo prenunciou a própria morte, deixando registrada a vida desgraçada, atormentada e ambígua.

Morrerei em Paris com aguaceiro
numa tarde da qual já bem me lembro.
Morrerei em Paris — não vou embora —
Numa quinta, de outono, como agora.

Quinta será, pois hoje, quando proso
estes versos, meus úmeros pisei
e, nunca como hoje, me voltei,
com todo o meu caminho, a me ver só.

Morreu César Vallejo, que apanhava
de todo mundo a quem nunca fez nada;
batiam duro com um pau e duro

também com uma corda; assim confirmam
as quintas como hoje e os osso úmeros,
a solidão, a chuva e os caminhos…

Quem escreveu esse texto

Gustavo Zeitel

Jornalista e escritor, publicou O submundo do meu quarto (Multifoco).