Poesia,

Inteligente e intransigente

Antologia de Wallace Stevens em tradução de Paulo Henriques Britto é momento essencial na recepção do poeta em língua portuguesa

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Uma poesia que se quer música das ideias, como a de T. S. Eliot ou a de Wallace Stevens, apresenta ao tradutor dois desafios assinaláveis: preservar intacta a musicalidade dos versos e transmitir um pensamento poético que não se confunde, no entanto, com uma argumentação filosófica. 

Poeta hermético, Stevens praticava um hermetismo bastante mais insidioso do que o de Eliot, menos ostensivamente erudito e intertextual, musicalmente mais discreto, embora não menos intenso. O imperador do sorvete é uma edição revista e aumentada de uma tradução que Paulo Henriques Britto publicou em 1987. Há muito conhecido como tradutor, Britto tornou-se, entretanto, reconhecido como poeta. Um poeta sofisticado, irónico, oficinal, e que logo imaginamos muito indicado para traduzir Stevens, o que de facto se verifica: estuda os poemas, decifra-os na medida em que estes se mostram decifráveis, possui vastos recursos estilísticos, domina a estrutura e a metrificação, é virtuoso tanto em tom elevado como em registo coloquial. Talvez o mais questionável seja o cunho lúdico de algumas soluções, justificado no livro de estreia de Stevens, mas não tanto nos seguintes, meditativos e ponderosos. E, no entanto, é nesses livros que o mérito de Britto enquanto tradutor mais se destaca, porque trabalha com poemas à primeira vista demasiado densos, mas que se mostram imagéticos e imaginativos, o que nem sempre sobrevive nas traduções.

Harmonium (1923, edição ampliada em 1931), a tardia estreia de Wallace Stevens (nascido em 1879), é um dos volumes mais exigentes e ao mesmo tempo mais exuberantes do modernismo anglo-americano. Livro musical e opaco, brilhante de sínteses e análises, explicita desde logo os grandes temas da poesia do autor. Britto, no seu excelente prefácio, resume-os em duas linhas: “a necessidade do sublime apesar da falência da religiosidade cristã; o lugar da arte num mundo secularizado; a relação entre imaginação e realidade, poesia e verdade”. Poemas como “Manhã de domingo” são colossos pós-metafísicos, enquanto “Caso do jarro” é Keats revisitado com um desplante quase de “tinha uma pedra no meio do caminho”. 

Inteligência soberana

Homem reservado, conservador, pouco viajado, durante anos vice-presidente de uma companhia de seguros no Connecticut, Stevens é o menos romântico dos poetas, se por romantismo entendermos entusiasmo e biografia aventurosa; mas se romantismo significar um predomínio da imaginação soberana, então Stevens é o grande romântico contemporâneo depois de Yeats. Justamente por não se tratar de um livro de juventude, Harmonium demonstra um avançado grau de maturidade poética, mantendo, porém, uma irrequietude assinalável. Trocadilhos e epigramas, imitações e enigmas são instrumentos do idioma poético de Stevens, conciso, rítmico e abstrato, racionalíssimo, mas subjectivíssimo. 

Em Harmonium, a música não é apenas som, mas sentimento, as visões parecem-se mais com intuições do que com experiências místicas, as coisas são observadas enquanto “coisas como elas são”, incognoscíveis em si mesmas mas interpretáveis numa eufórica multiplicidade de sentidos e de perspectivas. É por isso que um dos poemas mais conhecidos desta colectânea lembra que há “treze maneiras de olhar para um melro”. Jogando com categorias de Kant ou com figuras de Picasso, este é um livro de provocações obscuras e de uma complexidade intelectual que se exprime com frequência em “anedotas”, situações comuns ou em linguagem comum, como um sorvete num velório ou uma “verde chinelinha”.

Em contrapartida, Ideas of Order (1935), aqui insuficientemente antologiado, representa um desvio para “espectrais demarcações”, mais graves, mas ainda intrigantes. Por exemplo, aparece um tal “Ramon Fernandez” num poema, e houve, à época, quem julgasse que se tratava do crítico homónimo, um nacionalista francês; Stevens, porém, negou que se referisse a esse Ramon Fernandez, explicando que tinha inventado um nome espanhol banal, inconsciente da coincidência. Fosse como fosse, a verdade é que o poeta se mantinha afastado das questões sociopolíticas do seu tempo, o que lhe valeu não pouca hostilidade no meio cultural. 

The Man with the Blue Guitar (1937), longo poema dividido em breves secções, defende a poesia como único assunto do poema, com o guitarrista apresentado como uma espécie de demiurgo: “Disseram: “É azul teu violão / Não tocas as coisas tais como são”. / E o homem disse: As coisas tais como são / Se modificam sobre o violão”. É um “poema da mente no acto de encontrar”, como Stevens escreve no livro seguinte, Parts of a World (1942). Uma ideia confirmada em duas colectâneas de meditações narrativas, por vezes em diálogo, ambas “intemporais” como as estações que lhes dão título: Transport to Summer (1947) e The Auroras of Autumn (1950).

No primeiro, sucedem-se as artes poéticas, as autodefinições, as metamorfoses: o poema que resiste à inteligência sem o conseguir por completo, a linguagem que voga entre a “algaravia do poeta e a do vernáculo”, o leitor que se transforma no livro que lê. E a “ficção suprema”, teologia agnóstica de um poema que faz as suas próprias regras e as reconfigura a cada instante: “deve ser abstracto”, “deve mudar”, “deve dar prazer”. No segundo título citado, penúltimo publicado em vida, a imaginação poética é ainda a mais alta invenção, mas quer-se “sem auréola”, como em Baudelaire. E aparece um “anjo da realidade” que, à maneira de Rilke, interroga a densidade ou mesmo a possibilidade metafísica de uma poesia pós-cristã. 

Paulo Henriques Britto oferece-nos versões fluentes e cativantes desses poemas tardios, incluindo os póstumos. E fornece notas detalhadas, algumas das quais baseadas em estudos de Helen Vendler e de Eleanor Cook que têm aumentado de forma considerável a “legibilidade” destes poemas tão inteligentes quanto intransigentes. E é a legibilidade, tanto quanto a música das ideias, que faz de O imperador do sorvete um momento essencial na recepção de Wallace Stevens em língua portuguesa.

Nota dos editores    
Neste texto, foi mantida a grafia vigente em Portugal.

Quem escreveu esse texto

Pedro Mexia

Publicou Queria mais é que chovesse (Tinta da China Brasil).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.