Livros e Livres,

Memórias em territórios marginais

Coletânea cruza fronteira do apagamento para mapear áreas pouco exploradas das resistências LGBTQIA+

01set2023 | Edição #73

Nasci em 1985, no interior de Goiás e cresci no interior de Mato Grosso. Migrei para a capital para estudar e fugir da lesbofobia que me cercava, antes mesmo que eu entendesse o que significava a palavra sapatão. Minha geração cresceu sem referências LGBTQIA+, seja pela força da política do armário ou pelas vidas que a aids nos roubou. Crescemos sem ver pessoas LGBTQIA+ na TV, no parlamento, nas revistas, nos livros ou nos acervos dos museus.

Talvez para compensar esse vazio, muitos de nós vêm se dedicando à preservação da memória e dos arquivos LGBTQIA+. As novas gerações encontram hoje diversas iniciativas, desde mais antigas, como o Centro de Documentação Luiz Mott, criado em 2007 em Curitiba, ao recente Museu Transgênero de História e Arte, acervo virtual iniciado em 2018 e único do gênero no país. Um desafio comum na constituição desses arquivos é como integrar lembranças de sujeitos dissidentes à memória coletiva oficial. 

Lançada em junho, a coletânea Novas fronteiras das histórias LGBTI+ no Brasil, publicada pela editora Elefante e organizada por Renan Quinalha — editor dessa seção da revista dos livros — e Paulo Souto Maior, é um exercício intelectual e político de estreitamento das fronteiras que separam uma memória coletiva dispersa de uma organizada.

Minha geração cresceu sem referências LGBTQIA+, seja pela força da política do armário ou pelas vidas que a aids nos roubou

A parceria entre os organizadores e os trinta autores reforça que história e memória são temas interdisciplinares, que interessam não apenas aos historiadores, mas a áreas tão diversas quanto direito, antropologia, sociologia, serviço social e psicologia, nas quais atuam. A coletânea tece um panorama das produções acadêmicas, com um mapeamento de regiões e territórios brasileiros pouco explorados na história mainstream dos movimentos e resistências LGBTQIA+. 

Dividido em três seções — Fronteiras Temporais, Territoriais e Temáticas —, o livro é composto por 24 artigos escritos por pesquisadores de distintas áreas de conhecimento, de variadas regiões, situados entre a favela carioca, o Cerrado, o Pantanal, os sertões nordestinos, os territórios indígenas e outros contextos interioranos.


Novas fronteiras das histórias LGBTI+ no Brasil, coletânea organizada por Renan Quinalha e Paulo Souto Maior, é um exercício intelectual e político de estreitamento das fronteiras que separam uma memória coletiva dispersa de uma organizada

Os trabalhos tratam do período colonial aos tempos atuais, em que já se avançou política e juridicamente — mas não sem tensões, disputas e refluxos — na trajetória pelo reconhecimento da diversidade sexual e de gênero. Experiências de dor, retratos de violência, registros do preconceito que atinge a vida de todas nós, pessoas LGBTQIA+, em maiores níveis a depender dos marcadores sociais de raça, gênero, geração ou classe social que nos atravessam. A história de Si, uma travesti evangélica, negra e pobre que vive com hiv, contada por Marcelo Natividade no capítulo “Violência e anseios de aparecimento em uma igreja lgbt”, exemplifica esses enquadramentos.

A resistência também está expressa nos “arquivos vivos” que a coletânea traz à tona, em histórias de velhices gay, de vivências queerindígenas, de lesbianidades “valentes” e de bichas “mais famosas da cidade”.

Capital da fé

Memória e sociabilidade LGBTQIA+ em contextos interioranos são temas que me mobilizam profundamente. Quando estava produzindo o documentário No avesso da noite de Palmas (2017), sobre a primeira boate para esse público do Tocantins, a cidade de Palmas era descrita como uma capital jovem e promissora, com oportunidades de trabalho e estudo para quem migrava do interior do estado ou de outras regiões do país. Ao mesmo tempo, era vista como conservadora por quem vinha dos grandes centros urbanos. Na época, estava entre as três capitais mais evangélicas do país. Esse indicador foi explorado pelas gestões municipais, que a tornaram a “capital da fé” e referência em Carnaval gospel.

Dentre os interlocutores do curta-metragem, entrevistei um rapaz de 42 anos que se identificava como gay e fazia montação drag para se divertir em eventos, como a Parada do Orgulho de Palmas, quando se deslocava de uma cidade a cerca de 100 km para socializar na capital. Para ele, Palmas era uma “rota de fuga” para a aridez do pequeno município em que vivia, onde, quando criança, era xingado de “veadinho”, “pula-moita” e “mulherzinha”. Apesar do sofrimento, o rapaz também relatou que “não tinha vergonha de ser quem era” e que, apesar do sofrimento, enfrentou as injúrias se mantendo orgulhoso e criando espaços coletivos de resistência LGBTQIA+ na mesma cidade quando adulto.

Sexualidades dissidentes

Moisés Lopes e Marcos Aurélio Silva, no capítulo “Da sociabilidade à militância”, que discute o cenário mato-grossense, nos alertam para o fato do contexto interiorano não poder ser pensado a partir de uma oposição simples entre capital e interior. Guilherme Passamani, em “Farras e fervos com a Carmem Miranda do Pantanal”, ratifica o quão fundamental é observar a dinâmica relacional entre regimes de visibilidade e invisibilidade, bem como o silêncio e o segredo acerca das sexualidades dissidentes.

Entre experiências, memórias e resistências, pensar contextos fora dos grandes centros põe em destaque as migrações em busca de liberdade para viver a sexualidade ou por melhores condições econômicas. Ambos processos envolvem expulsões por violência estrutural, orientação sexual ou identidade de gênero.

Saber sobre nosso passado é alimento para as lutas do presente e uma janela para as transformação do futuro

A LGBTfobia de Estado se estrutura a partir da desproteção social, do apagamento e da invisibilidade. Atualmente, mesmo com um aparato jurídico-legal que criminaliza a discriminação contra pessoas LGBTQIA+, a violência institucional tende a se aprofundar se não houver investimento em preservação da memória coletiva, garantia de trabalho justo e regulamentação para combater a violência digital. No mais, só é possível incorporar tais “memórias marginais” com estímulo à superação do sentimento de exclusão e restabelecimento da verdade e da justiça. 

Novas fronteiras das histórias LGBTI+ no Brasil vem nessa onda e nos dá a certeza de que saber sobre nós mesmos e nosso passado alimenta as lutas do presente e abre uma janela no horizonte das transformações que queremos construir para o futuro.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Bruna Andrade Irineu

É pesquisadora e professora.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.