Literatura infantojuvenil,

Tolkien para crianças

Autor de ‘O senhor dos anéis’ narra as peripécias de personagem excêntrico ao dirigir um carro

01out2020 | Edição #38 out.2020

John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) ficou conhecido do grande público por obras como o infantojuvenil O hobbit, o épico de alta fantasia O senhor dos anéis — ambos adaptados para o cinema com grande sucesso pelo neozelandês Peter Jackson, que os dividiu em duas trilogias, lançadas entre 2012 e 2014 e 2001 e 2003, respectivamente — e as inúmeras obras de publicação póstuma, na maior parte relacionadas à Terra Média, o universo fantástico criado por ele, o que inclui até mesmo línguas e alfabetos próprios.

Contudo, mesmo tendo sido um dos escritores mais influentes do século 20, é relativamente recente o esforço de se publicar sua obra completa no Brasil com rigor editorial, em especial seus trabalhos voltados para as crianças, que continuam pouco conhecidos por aqui. 

O sr. Boaventura que dá título ao livro é um tipo excêntrico do interior, com um gosto particular por cartolas altas e um animal de estimação exótico — um coelho com pescoço de girafa, o girafoelho — que, num dia qualquer, decide sair de casa e trocar sua bicicleta por um carro amarelo. Sua inabilidade ao volante o coloca em uma sequência de eventos desastrados, somando à história o Seu Dias, a dona Das Noites, três ursos glutões e a família Bronco.

Há livros infantis que foram feitos para serem lidos sozinhos pela criança, enquanto outros parecem pedir a presença de um adulto para contar a história em voz alta. Sr. Boaventura se encaixa melhor nesse segundo tipo. Histórias infantis não eram estranhas a Tolkien — seu primeiro livro, O hobbit, também nasceu de histórias que contava aos filhos, e foi o sucesso deste que o levou a propor Sr. Boaventura para seu editor. Porém, o alto custo das ilustrações coloridas, feitas pelo próprio autor, mostrou-se então proibitivo, e o livro acabou engavetado até a publicação póstuma, que só ocorreu em 1982. 

Humor pastelão

O pequeno mundo interiorano de Sr. Boaventura tem o charme da literatura infantil inglesa do início do século 20, com suas personagens provincianas, ursos glutões e chás da tarde entre amigos. A interação entre texto e ilustração leva a comparações imediatas com o personagem de Pedro Coelho, criação de Beatrix Potter (1866-1943), que surgiu pela primeira vez em 1901. Contudo, faltam a Tolkien a graça e a sensibilidade emocional de Potter, que aqui são substituídas pelo humor pastelão, nascido dos muitos incidentes provocados pela falta de habilidade do sr. Boaventura ao volante (inspirados, ao que se diz, na do próprio autor).

O leitor adulto, já familiarizado com a obra de Tolkien, irá reconhecer vários de seus temas recorrentes: sua desconfiança e visão crítica em relação à tecnologia e à modernidade, personificadas na figura do carro como canalizador de acidentes e infortúnios; a presença de florestas sombrias e seres luminosos — os ursos pintam-se com tinta fosforescente para assustar os humanos —; e o espírito glutão e autocentrado de vários personagens, que em muito lembram seus hobbits — um deles até mesmo possui o nome de Gamgi, que seria depois reutilizado em O senhor dos anéis, no personagem de Samwise Gamgi, o companheiro de aventuras de Frodo Baggins. E, de certo modo, também sua frieza descritiva, que toma a forma de detalhadas notas fiscais que os personagens apresentam uns aos outros, descrevendo os gastos de cada um deles, e que aparecem como ilustrações. O livro conta ainda com trechos diagramados em uma tipografia criada especificamente para o livro, inspirada na caligrafia do próprio Tolkien.

O mundo de ‘Sr. Boaventura’ tem o charme da literatura infantil inglesa do início do século 20, com suas personagens provincianas e chás da tarde entre amigos

Tendo nascido em algum momento entre as décadas de 1920 e 1930 como uma história para entreter os quatro filhos do autor, esse livro traz em sua origem uma narrativa familiar privada, que foi posteriormente reelaborada para o público, e esse elemento se faz sentir em alguns momentos. Em especial, o modo cumulativo como os personagens vão sendo introduzidos e acomodados no carro, como brinquedos, e a aleatoriedade dos eventos que geram soluções nonsense divertidas, remetendo à lógica das brincadeiras infantis, como quando a população da cidade cerca a casa do sr. Boaventura e, assustada pelo girafoelho, foge, dando cambalhotas pelo caminho. 

Falta também algum afeto e personalidade aos muitos personagens para que se tornem marcantes, como os habitantes do Bosque dos Cem Acres do Ursinho Pooh, de A. A. Milne (1882-1956). A criança pode ainda ter dificuldade em se identificar com o protagonista — afinal de contas, ele é um adulto. Apesar disso, a obra mantém certas características dos clássicos infantis, como o charme bucólico e passageiro dos passatempos e brincadeiras de um piquenique no parque.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Samir Machado de Machado

Escritor, é autor de Tupinilândia (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.