Literatura em língua francesa,

Onde as almas se cruzam

Livro mostra como Carolina Maria de Jesus se tornou, sem saber, a grande interlocutora de escritora franco-antilhana

01abr2021 | Edição #44

Quem não foi atravessado/a pelo furacão Carolina ainda tem algo a esperar do Tempo. Carolina de tantas ventanias e arrebentações. A que abre horizontes e estradas inauditas.

Inúmeros encontros de mulheres com as letras foram possibilitados pela simples existência da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-77). Dela emerge a ruptura com as históricas interdições e silenciamentos que têm gerenciado sistemas de escrita desde sempre, a partir dela irrompe a força em muitas mulheres negras que até então não tinham espelhos possíveis para se reconhecerem como autoras de literatura. Carolina funda uma tradição. Mas, diferente de tudo o que já se sabe sobre tradição, a sua é constituída do que antes era latência e/ou invisibilidade.

Cúmplice e irmã

No dia 20 de maio de 1958, Carolina Maria de Jesus escreveu no seu Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960): “Abri a janela e vi as mulheres que passam rapidas com seus agasalhos descorados e gastos pelo tempo. Daqui a uns tempos estes palitol que elas ganharam de outras e que de há muito devia estar num museu, vão ser substituídos por outros. É os politicos que há de nos dar. Devo incluir-me porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”. Dois anos depois, também em 20 de maio, após ter tomado conhecimento da existência da escritora mineira em uma reportagem da revista Paris Match, a antilhana Françoise Ega (1920-76) escreveu:

“Se um dia eu lhe enviar estas linhas, você vai querer saber o resto da minha história. Hoje à noite, digo a mim mesma: ‘De que adianta?’. Estou cansada. Quando você juntou as tábuas para o barraco, você não conhecia a expressão ‘de que adianta?’, isso me dá uma vontade danada de escrever meus pensamentos, preto no branco, enquanto as crianças dormem. Pego de novo a Bic! Para ganhar dez francos à tarde, fiz quatro quartos, limpei dois banheiros, dois armários, descasquei dois quilos de ervilha. Em casa, só como as enlatadas, não gosto de descascar, irrita a ponta dos dedos. Mas não estou zangada, estamos no final do mês e é dia das mães, com o dinheiro poderei fazer um bolo bem grande. O dia das mães é ainda uma festa dos meus filhos! Eles pegaram um dos meus cadernos, agora tenho que copiar de novo todas as folhas. […] Fecho uma janela em meus pensamentos, outra se abre, e a vejo curvada, na favela, escrevendo no papel que tinha catado no lixo. Eu, que tenho a imensa felicidade de ter um caderno, um abajur e uma música bem baixinho que sai do rádio, acho que seria covardia largar tudo porque uma criança rasgou as folhas do caderno. Só me resta recomeçar.

As cartas jamais enviadas que Françoise Ega escreveu da França para Carolina do Brasil vão além de um encontro possível entre duas mulheres negras separadas pelo imenso oceano e pela língua. Elas também inscrevem o encontro de Ega consigo mesma e com a sua literatura. Mais que correspondente ideal, Carolina tornou-se interlocutora — uma cúmplice, uma irmã — nesse processo complexo de reconhecer-se escritora e de buscar caminhos efetivos para tal realização. No livro Cartas a uma negra — que a editora Todavia traz agora ao Brasil no momento histórico em que, pela primeira vez, a obra completa de Carolina começará a ser publicada pela Companhia das Letras —, somos levados para dentro do cotidiano de Ega, de seu universo familiar, da cartografia que ela compõe para o mundo do trabalho nas casas de verdadeiras necropatroas, da sua vivência dentro da comunidade de imigrantes negros na França, de seu olhar observador e crítico, de suas reflexões políticas, afetos e pequenas alegrias.

As cartas jamais enviadas vão além de um encontro possível entre duas mulheres negras

O texto é organizado como um diário, narrando progressivamente os dias e o ponto de vista particular de quem viveu o que registra. Mas sua apreensão e alcance são de romance, no qual se inscrevem o tempo, os pensamentos, o espaço, os sonhos e a experiência de uma mulher negra que, ao narrar seu cotidiano, alcança a alta beleza da forma. Há muita metalinguagem também na obra, pois ali a autora registrou o testemunho da escrita de um outro livro: Le Temps des madras (1966), que elabora as memórias de sua infância e adolescência na Martinica e possui proximidades com outro livro de Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita (1986), que apesar do título é um romance memorialista. A conversa com a brasileira do outro lado do oceano constituía um espaço de articulação de seu íntimo, e por isso Ega frequentemente menciona sua insegurança e sua esperança, as tentativas de contato com editores, a recompensa ofertada pelos primeiros leitores de seus manuscritos, a ansiedade de pertencer a esse lugar autoral e nele ser reconhecida.

Além da entrega à literatura, as duas mulheres tinham muitas coisas em comum: ambas eram negras, mães, vivendo em lugares distantes de suas cidades de origem, inconformadas com a exploração. Carolina morreu em 1977, Ega em 1976. A primeira desistiu do trabalho doméstico, que ela considerava “semicolonial”, porque se entendia muito independente para “passar a vida limpando as bagunças alheias”. Já Françoise Ega, em determinado momento de seu livro, diz que “o mais penoso para uma faxineira, eu acho, é o cheiro da vida dos outros”. Tanto para a autora brasileira quanto para a antilhana, a atividade laboral como empregada doméstica atingia lugares muito sensíveis da experiência, levando, no caso da primeira, ao abandono dessa função e à opção pela liberdade precária de catar papéis na solidão das ruas e, no caso da segunda, a uma crescente indignação que a tornou cada vez mais politizada em relação ao lugar de subalternidade imposto pelas patroas às moças antilhanas sem muitos mecanismos de defesa.

Mas a maior de todas as semelhanças era, sem dúvida, a relação com a escrita. O entendimento compartilhado de que através da palavra literária se poderia plasmar um lugar de descanso, conexão e reencontro.

“10 de agosto de 1962
Faz um mês que parei de escrever, de falar com você, Carolina, porque meu primogênito riu, ele me disse, com sua lógica infantil, que era ridículo escrever para uma pessoa que jamais vai me ler. […] Nós não falamos o mesmo idioma, é verdade, mas o do nosso coração é o mesmo, e faz bem se encontrar em algum lugar, naquele lugar onde nossas almas se cruzam.”

Lettres a une noire, de Françoise Egas foi publicado postumamente, e embora o encontro com Carolina Maria de Jesus tenha sido apenas sonhado, a materialidade da ponte é muito real. A ideia de fronteira é ressignificada quando diante dos caminhos da diáspora negra, solo fertilizado em um oceano de memória, interdiscursividade e resistência. E talvez seja mesmo a palavra, aquele lugar, onde nossas almas se cruzam.

Este texto foi feito com o apoio da Embaixada da França.

Quem escreveu esse texto

Fernanda Miranda

É professora adjunta da Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará. Compõe o conselho editorial responsável pela publicação da obra completa de Carolina Maria de Jesus pela editora Companhia das Letras.

Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.