Literatura brasileira,

Sobre humanos e monstros

Em romance permeado por questionamentos metafísicos, Joca Reiners Terron percorre limites entre nossa espécie e outros viventes

01set2023 | Edição #73

O bebê encontrado no cocho da estrebaria é adotado por uma família de açougueiros. Durante a pandemia, um homem religioso perde a esposa e passa as madrugadas velando a filha internada na UTI. No interior do Mato Grosso, um imigrante palestino descobre que sua família foi assassinada pelo exército israelense em um massacre em Jerusalém Oriental.

Essas são algumas das intrincadas pontas que compõem o emaranhado narrativo de Onde pastam os minotauros, novo romance de Joca Reiners Terron, que aborda temas caros à sociedade nos últimos anos, como a pandemia, a fome, o desemprego e o negacionismo, tudo isso impulsionado por uma investigação existencial que indaga o que significa estar aqui, andando em espiral por esse labirinto-matadouro. 


Onde pastam os minotauros, novo romance de Joca Reiners Terron, aborda temas caros à sociedade nos últimos anos, como a pandemia, a fome, o desemprego e o negacionismo

O enredo principal transcorre durante a última segunda-feira útil do ano em um abatedouro no interior do Mato Grosso, e é intercalado por memórias ancestrais e recentes, desde rituais romanos de sacrifício até a madrugada anterior ao crime planejado e enfim colocado em prática pelos quatro personagens principais da trama: o Cão, o Crente, Lucy Fuerza e Ahmed, todos funcionários do açougue.

A obra aponta a trajetória destrutiva de uma espécie aprisionada no labirinto de sua própria estupidez

Num suspense engenhosamente construído, o leitor se vê obrigado a seguir tateando numa busca em que sempre sabemos menos do que os personagens. As linhas narrativas do romance têm em comum a relação entre humanos e bovinos, e se apresenta de variadas formas: do rito sacrificial religioso à pecuária intensiva, da iniciação sexual de um adolescente em um curral à traição que é enganar o animal ao conduzi-lo à morte. 

A relação entre humanos e bovinos é vasta, milenar e presente em diversas culturas. Entre religião e economia, política e mito, humanos e bovinos parecem estar entrelaçados em um ciclo sem fim de adoração e maus-tratos, desejo e destruição. 

Perpassando essas questões, Onde pastam os minotauros surge como uma história de vingança religiosa, política e de classe, mas sobretudo de espécie, e narra os crimes que nos conduziram até aqui: a exploração, a fome, o massacre e o desprezo pela vida de humanos precarizados e de animais.

Nesse romance estão presentes os principais elementos da obra de Terron. Ainda que o conjunto pareça ter como eixo questionamentos sobre a identidade e a natureza do tempo, esses temas são corroídos e retrabalhados em cada livro. Se em Noite dentro da noite (2017) o autor empreendeu uma autobiografia monstruosa em que o personagem principal ouve de terceiros o relato de quem é ou deveria ser, em A morte e o meteoro (2019) a identidade é uma frágil ficção que não resiste ao poder do uso ritual de alucinógenos, e em O riso dos ratos (2021) ela é paulatinamente pulverizada junto à humanidade de seu protagonista. Já em Onde pastam os minotauros, a identidade posta em xeque não parece ser a individual, mas sim a da espécie humana, e gera a dúvida: seriam ainda humanos os famintos e desumanizados pela precarização? 

Em 2014, no Colóquio Os Mil Nomes de Gaia, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse que o fato de os detentores dos meios de produção e trabalhadores serem “animais pertencentes à mesma espécie zoológica atrapalhava muito o progresso da luta de classes”, que do contrário seria vista como de fato é: uma “luta de espécies”. O que ocorre então é a transformação de outros humanos, assim como dos demais viventes, em coisas que devem obedecer ou ser tiradas do caminho, sugadas enquanto ainda têm serventia.

Não é por acaso que o personagem principal do romance, aquele que ama os animais e ouve as vozes que o guiam, captando sinais não-humanos, seja chamado simplesmente de Cão, sem que nunca saibamos o seu nome humano. Personagem entre-mundos, Cão é um agente da monstrificação. 

Aqui é preciso refletir sobre a diferença entre o “desumanizado” e o “monstruoso”. O “desumanizado” é um lugar de negação. Desumanizar os precarizados e miseráveis é o método utilizado para explorar e massacrar esses corpos. O monstruoso, ao contrário, não seria o lugar da falta, mas antes de um excesso, e é justo esse excesso que aterroriza. Se os desumanizados podem ser controlados com mão de ferro, o monstruoso seria o incontrolável. Ao se entregar ao monstruoso, o desumanizado empreende enfim a revolta que já estava destinada a acontecer, vingando de uma só vez todos os crimes cometidos.

Além de pôr em cena essa luta de espécies que é fundamental para que entendamos o buraco em que estamos enfiados, outro grande acerto de Terron são os fragmentos narrados da perspectiva do não-humano, que lembram A autobiografia do vermelho, de Anne Carson, e o conto “A casa de Astérion”, de Borges. Tanto no livro de Carson quanto no conto de Borges a narração é feita da perspectiva do monstro, o que faz a crueldade do humano ser o verdadeiro ato aberrante. 

Monstro vermelho

No livro de Carson, lemos supostos fragmentos do poeta grego Estesícoro narrando o roubo do gado de Gerião por Héracles. Gerião era um monstro vermelho que passava seus dias na ilha de Eriteia zelando o seu rebanho, até que o herói, cumprindo um de seus Trabalhos, chega para assassiná-lo e roubar o gado. Carson nos diz que, se Estesícoro tivesse sido poeta mais convencional, teria assumido o ponto de vista de Héracles e feito um relato da vitória da cultura sobre a monstruosidade. No entanto, ele faz o relato do cotidiano de Gerião, seu cão e sua vida pacata interrompida pela violência da “cultura”. 

Não seria absurdo aproximar o personagem Cão do monstro Gerião, ambos afeiçoados a seu gado, ambos sem lugar entre os humanos. E se a arte da capa de Filipa Damião Pinto aponta para o sangue vertido em Onde pastam os minotauros, de animais e humanos, podemos dizer que esse sangue também é de Gerião, e por isso o livro é vermelho como o monstro grego.

Marcada por personagens que estão para além do ordinário e comezinho, habitada por monstros, cosmologias amparadas no uso ritual de besouros alucinógenos e até mesmo por um personagem líquen, a obra de Terron como um todo parece dedicada a perpetuar o mistério em histórias, como diz o Cão para Lucy, sempre buscando estressar os limites entre o humano e os outros viventes, apontando a trajetória destrutiva de uma espécie que parece aprisionada no labirinto de sua própria estupidez.

Quem escreveu esse texto

Luiz Guilherme Fonseca

Escritor e pesquisador, é doutor em literatura.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.