Literatura brasileira,

Mães paralelas

Fabiane Guimarães maneja com eficiência elementos de suspense em seu segundo romance, sobre barrigas de aluguel

30set2023 | Edição #74

Não é tarefa simples avaliar um segundo livro; seria lícito falar em “obra” ao abordarmos uma autora jovem, em plena produção, nessa altura? Também não parece correto — nem natural — ignorar o impulso de ler o novo título à luz do primeiro. Ainda mais quando esse foi bem acolhido pelo público, ficou entre os finalistas de um dos maiores prêmios de literatura do país, o São Paulo, na categoria estreantes, e deve ganhar versão cinematográfica. Vamos, então, aos paralelos.

Fabiane Guimarães gosta de tramas sobre laços familiares, com algum mistério ou segredo. Esse é o primeiro ponto que salta à vista ao lermos Como se fosse um monstro, que a autora brasiliense acaba de lançar pela Alfaguara, depois do sucesso de sua estreia, Apague a luz se for chorar, que saiu pela mesma editora em 2020.

Suas protagonistas femininas são profundamente humanas — não fortíssimas, nem sofredoras inveteradas, tampouco mulherzinhas. São gente que falha, com vilezas, mas que segue em frente. Às vezes duras e secas, mas aparentemente esperançosas, lá no fundo, de algo assim como uma redenção.


Como se fosse um monstro, de Fabiane Guimarães

Entre semelhanças, a autora repete algumas fórmulas, mas se esquiva com brio repisar alguns artifícios. Temos de novo como pano de fundo uma questão social — barrigas de aluguel e aborto (onde lá tínhamos doença e eutanásia). Ou, mais amplamente, o desejo ou não de ser mãe (antes, a decrepitude do corpo e o luto). O que interessa a Guimarães, porém, é como o grande tema se imbrica com a pequena vida das protagonistas. No caso de Como se fosse um monstro, a vida mínima de Damiana, contada desde que era uma moça da roça até se tornar a mulher madura que, na primeira cena do romance, sorri tapando os dentes que desistiu de arrumar.

O pano de fundo é uma questão social — barrigas de aluguel e aborto. Ou o desejo ou não de ser mãe

Um dia, muitos anos antes, Damiana recebera a visita de uma prima no rancho onde nasceu (e onde, no presente da narrativa, vive novamente). Vinda de Brasília, a prima introduz na cabeça da jovem a sedução da capital, “uma cidade chique e bonita, porque é onde o presidente mora”. Damiana então se lança atrás do serviço prometido pela prima. O trajeto dura duas horas, mas poderia ser uma viagem sideral essa que a remove da roça para uma casa com piscina à beira do lago para sua então inimaginável trajetória de “égua parideira”.

Somos levados com firmeza pela jornada que essa mulher vai contar décadas depois a Gabriela Suertegaray. Jovem jornalista argentina radicada no Brasil, ela viaja ao interior do país atrás de Damiana, interessada em escrever um livro sobre como ela tinha se tornado uma barriga de aluguel. O escândalo ganhara, em outros tempos, as manchetes de jornal, mas sua protagonista nunca falou a respeito.

A personagem de Damiana — mais que a de Gabriela — cativa, e queremos também nós entender por que a mulher que ela se tornou seria algo assim como um monstro. Na verdade, não há nela nada de monstruoso, e em nenhum momento transparece qualquer juízo moral nesse sentido. Damiana se julga, sim, mas não de modo excessivo. Seu pragmatismo é crível, e isso conta pontos para nos afeiçoarmos e acreditarmos nela.

A construção da trama, com reviravoltas inesperadas, é bem-sucedida. A autora disse publicamente que lamenta (com razão) que no Brasil haja preconceito contra a literatura de gênero, em especial o policial que ela tanto aprecia. Como leitora de Garcia-Roza e Fred Vargas, cujos aprendizados aproveita bem, Guimarães faz com que o leitor fique preso e se deixe surpreender — como nos melhores gialli italianos ou polars franceses.

Fragmentos

Quando Gabriela chega a Damiana, diz que quer saber “tudo”. Escuta de volta que não teria “estômago” para isso -— mas Damiana não se nega a contar sua história. Ao fim do primeiro dia de conversa, a jornalista, exausta, se joga na cama e pondera que “ouvir Damiana era mais importante, mais urgente, do que refletir sobre a própria dor”. O motivo da dor de Gabriela e sua história são revelados com o passar das páginas.

Como no livro anterior, as tramas paralelas se alternam e confluem, ainda que a construção seja formalmente diferente. Em Apague a luz se for chorar, a história de Cecília, a protagonista, órfã ao mesmo tempo de seu pai e mãe bem idosos, era contada por sua própria voz; a de João, um pai solteiro de um filho com paralisia cerebral, era narrada em terceira pessoa.

Considerando o passado de redação de jornal da escritora, talvez o caminho mais evidente fosse colocar a história da protagonista nas palavras da repórter. Ou em um depoimento em primeira pessoa de Damiana a Gabriela. Mas Guimarães opta por um narrador em terceira pessoa, onisciente. O foco se aproxima ora de uma, ora de outra, em diferentes capítulos, permitindo aproximações momentâneas com outras personagens.

Se há um reparo a fazer ao livro, resulta dessa opção narrativa que, em alguns momentos focalizados em Damiana, traduz de forma pouco crível a linguagem da protagonista.

De cara, dava para ver que a patroa não batia bem da cabeça. Tinha um jeito engraçado de falar e andava descalça. Talvez por isso precisasse de ajuda para as coisas óbvias, que a poeira não desaparecia dos móveis só de olhar. A patroa mostrou as dependências que necessitavam de limpeza, tudo muito silencioso e discreto, como uma mansão de segredos.

Enquanto a oralidade do início do trecho se cola bem à percepção de Damiana, a síntese da casa como “mansão de segredos” causa no leitor um estranhamento, uma perturbação, pequeníssima que seja, no nível do discurso. Esse tipo de tropeço formal se repete, mas não tira a graça, o engenho e a carnalidade das personagens de Guimarães, autora capaz de criar belas imagens líricas, que refletem de forma cuidadosa os mundos que ela retrata e constrói.

Duas sínteses que descrevem Brasília são especialmente felizes e mostram que a potência de sua escrita mora também nos detalhes. 

No primeiro romance, a cidade, para Cecília, que encontra enfim um horizonte, tem um “céu inacabável”. Já para Damiana, neste segundo livro, é uma “cidade aos pedaços”. Nada mais adequado para alguém que, a partir do coração do país, irradia fragmentos de sua vida mundo afora, na forma de outras vidas.

Quem escreveu esse texto

Francesca Angiolillo

Jornalista e escritora, é autora de Etiópia (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.