Literatura brasileira,

Corpo sonoro

Audiolivro de Ricardo Aleixo permite vislumbrar a quarta dimensão da poesia

24out2021 | Edição #51

“Quer coisa mais estranha que um poema enquanto lido?” A voz é a principal matéria do audiolivro. O texto se constrói através de uma espécie de corpografia sonora, conceito trabalhado por Ricardo Aleixo em seus poemas e performances. Durante os trinta minutos de seu audiolivro Palavrear, ouvimos seus poemas desenvolvidos no choque da poesia concreta com a etnopoesia. Os 49 poemas se dividem em faixas curtas, quase todas com menos de sessenta segundos.

“Ogum sonha algum plano de paz, que antes violentasse todas as correntes noções de paz.” Por mais que esteja gravado, o áudio provoca uma ilusão que faz com que ele não pareça fixo. Os poemas surgem de lugar nenhum e logo desaparecem, são inesperados e a cada reprodução são lidos pela primeira vez. Esse efeito é especialmente forte na leitura de Aleixo, que se aproxima e se afasta de uma articulação mais natural, distorcendo a prosódia por causa de uma forma de resistência por dentro da linha da fala. Durante a leitura de seus poemas, escritos em pretoguês, conceito criado pela filósofa Lélia Gonzalez, não dá para espiar quais serão as próximas palavras e nem como serão ditas, o que funciona muito bem para poemas como “Ogum sonha”, “Sobre escrever” e “Re:provérbio”, que se constroem pela quebra de expectativa. Em “Ogum sonha”, por exemplo, Aleixo vira várias vezes pelo avesso a noção de paz, pelo “reverso do verso anterior”, como disse em entrevista à Rádio usp. Em “Na noite calunga do bairro Cabula” há um efeito parecido: escrito após a chacina de doze meninos negros no bairro Cabula, em Salvador, mostra fragmentos da noite, variando a frase “Morri quantas vezes na noite calunga?”.

Forma e performance

Nesse audiolivro, a performance é forma, como escreve o crítico literário suiço Paul Zumthor em Performance, leitura, recepção. A respeito da leitura, ele diz que a compreensão que ela opera é fundamentalmente dialógica: meu corpo reage à materialidade do objeto, minha voz se mistura, virtualmente, à sua. Daí o prazer do texto. Essa experiência se evidencia, por exemplo, na leitura do poema “Outro, outra pessoa. O “sim” mais agudo e lento, meio tímido, não só mistura o autor ao eu-lírico, mas também puxa o ouvinte para dentro do poema.

O medievalista suíço desenvolveu um dos estudos mais importantes sobre a oralidade e a performance na poesia, influenciado por sua viagem a Feira de Santana na década de 70. Ele descreve que a performance, sempre ligada ao corpo, se liga também, inevitavelmente, ao espaço. Mas e quando não dá para ver o espaço? Por meio da leitura, seu ritmo e suas pausas, o poema se estabelece dentro de um espaço sonoro que possibilita, por exemplo, a leitura de “Barraco”, “Jongo” e “Geral”. Fora do audiolivro, eles passariam por fragmentos de fala do dia a dia. Dentro, são outra coisa. Ganham (ou recuperam) significado.

Por meio da voz de Aleixo, entramos em contato com nossa própria materialidade

Zumthor, no entanto, tem uma postura conservadora em relação à gravação de poesia. Segundo ele, isso causaria uma alienação da voz, apartada de sua corporeidade. Minha experiência ao escutar Palavrear foi muitas vezes oposta, principalmente durante o poema “Rainha onça”. Os versos iniciais, “Sou Elza, sou onça”, se aproximam pela semelhança de suas consoantes, mas a relação não se apazigua porque as vogais são diferentes. A sequência da vogal aberta para a fechada faz com que quem esteja lendo tenha que abrir e fechar a boca, mostrando os dentes tal qual uma onça. Esse fenômeno, descrito como a quarta dimensão da poesia pelo crítico literário americano M. H. Abrams, é a esfera motora e física da linguagem poética: “Estar alheio a essas sensações e gestos físicos, e simplesmente olhar através deles para os significados das palavras que eles transmitem, é desencarnar um poema”. O corpo do autor e seus movimentos permanecem ativos virtualmente. Afinal, a voz é a expansão do corpo. Por meio da voz espetacular de Ricardo Aleixo, entramos em contato com nossa própria materialidade.

Esse texto tem apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Maria Stockler Carvalhosa

É escritora e curadora da editora de audiolivros Supersônica.

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.