Arte,

Cores e dobras do tempo

Andrés Sandoval mostra por que é um dos mais interessantes artistas visuais em atividade no país

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Um dos nossos mais interessantes artistas chama-se Andrés Sandoval. Se você ainda não notou, é porque, no Brasil, a crítica de artes visuais ainda se ressente da problemática compartimentação e estratificação típicas da arte moderna. As subdivisões são claras: pintura, escultura, desenho e gravura. A fotografia entrou atrasada nessa lista, e o cinema nem era tido como pertencente às artes plásticas, teve que esperar o momento seguinte para ser admitido. 

Como neste texto se vai tratar de um livro, pode-se prosseguir nas subdivisões clássicas da gravura, xilogravura, litogravura, gravura em metal. Só nos anos 1960, com a entrada em cena do silk screen, visto com desdém pelos mestres gravadores, a gravura espraiou-se para carimbos, estampas, tatuagens, tudo o que se pode aplicar numa superfície, até na pele. No que se referia a livros, há o “livro de artista”, cuja inventividade advém da elevação de sua dimensão estética, da exploração da sua objetualidade plástica e chama a atenção por si só uma senda aberta por artistas do calibre de Maliévitch, Delaunay, El Lissitzky, Munari. Por fim, quanto à estratificação, pense-se na separações entre alta cultura/baixa cultura; arte erudita/arte popular; arte/não arte; arte/artesanato; arte/design; arte/ilustração; arte/decoração etc. Polaridades inoperantes e virtualmente infinitas. 

Sandoval é conhecido pelas ilustrações — na revista Piauí, no jornal Folha de S.Paulo, e, quem sabe, até nos spots sutis da New Yorker. No universo dos assim chamados “livros infantis”, realizou trabalhos surpreendentes, muitas vezes premiados. Todos esses livros têm como denominador comum a inflação da dimensão estética, coerente com os demais livros que produz, endereçados a outros públicos: publicações variadas, com colagens de desenhos com fotografias, recortes e objetos recortados em papel posteriormente fotografados, carimbos, desenhos a lápis e nanquim, dobraduras, dioramas, imagens com efeitos tridimensionais, vários deles resultantes de oficinas com crianças e adolescentes. Há também a produção ligada à sua formação de arquiteto, cenários e intervenções espaciais, uma delas admirável, aparentada com um dos melhores Metaesquemas, de Hélio Oiticica, tão bem-sucedida que leva a pensar sobre a escassez de novas intervenções do artista.

Embora em sua produção o desenho prevaleça, Andrés Sandoval é um exímio colorista, com destaque para a fração de sua obra dedicada aos padrões — patterns. Um padrão é uma regularidade, um ou mais elementos que se repetem de modo previsível. Essa recorrência, em sua forma abstrata, pode ser encontrada em produtos da linguagem, como a ciência. Na observação da natureza, padrões visuais são infinitos — flocos de neve, pingos de chuva, plantas, ondas, cristais etc. Na arte e na arquitetura, os padrões, sob a forma de superfícies e estruturas gráficas, remontam a manifestações ancestrais e atingem um de seus pontos máximos na arte islâmica. 

Sobre os efeitos dos padrões visuais sobre nós (a rigor, de toda forma de padrão, na música, nos ritmos das poesias), o filósofo Alfred Whitehead escreveu: “Arte é a imposição de um padrão sobre nossa experiência, e nosso prazer estético é o reconhecimento desse padrão”.

Nas artes visuais e nas então chamadas “artes aplicadas”, o emprego de padrões foi tão amplo, com destaque aos papéis de parede, que essa linhagem passou a ser identificada pela crítica moderna como “decorativa”, um anátema, uma simplificação inaceitável da natureza da arte, que deveria ser antifuncional, inutilitária, segundo os defensores da arte moderna, deslembrados da força das obras de Klimt, Matisse, Bonnard, e de artistas das vertentes Op, concreta e minimal. A perduração desse pensamento hoje fica patente na ressalva de muita gente à obra de Beatriz Milhazes, no não reconhecimento de sua extraordinária contribuição para o desenvolvimento de padrões complexos e do estudo da cor.

Ilustração

O preconceito contra o termo “ilustração” provém da mesma acusação de funcionalidade, de subordinação das artes visuais à literatura, imagens quaisquer — pintura, desenho, gravura —, acessória a uma narrativa. Se, por um lado, não há dúvida de que uma expressão artística dilui-se quando subsumida a outra, deve-se admitir, por outro lado, que não há problema se ela, consciente de suas peculiaridades, mantém sua potência. Sempre foi assim, e toda pintura dos mestres do Renascimento não perdeu o vigor por ilustrar passagens bíblicas, o grande roteiro do período. A menos que a palavra “ilustração” sirva para denominar uma expressão pusilânime, em princípio não há porque tratá-la em tom derrisório. Na altura em que estamos, não deveria haver mais dúvida sobre a qualidade artística de Saul Steinberg, Millôr Fernandes, Frank Miller e George Herriman, o criador do Krazy Kat.

Um breve passeio pelo site de Andrés Sandoval revelará o porquê da sua posição entre nossos artistas mais consistentes. Uma versatilidade de tirar fôlego, o que já o coloca nas fileiras da arte pós-moderna, com sobreposição intrincada de elementos díspares: imagens — plantas e galhos e troncos, multidões de gente entre carros, casas e caminhões, todos minúsculos, gaiolas, perfis humanos, moedas e selos, estruturas geométricas com a variabilidade dos fractais, signos abstratos como letras, sinais, números. O olhar trabalha febril, identificando referências desencontradas que parecem aflorar na superfície dos padrões propostos. A delícia de uma errância paulatinamente encontrando chão firme; a proliferação de focos do visível a cada passo do olhar.

Dobras é o novo produto da pesquisa poética de Andrés Sandoval. Como todo livro, uma experiência com o tempo. Umberto Eco defendia o texto, qualquer um, como uma máquina preguiçosa que só se movimenta a partir da iniciativa do leitor. De estático, objeto fechado sobre a mesa, conteúdo em estado latente, o livro abre-se ao leitor. Virar as páginas de um livro convencional vale como articulação por intermédio das pontas dos dedos, do espaço quadrangular de papel e do tempo, simultaneamente. Desdobrar suas páginas para o alto, para baixo, para os lados, abre bifurcações. É o que nos oferece Anilina, livro de 2011, desenvolvimento de livros anteriores e que consiste em “um papel dobrado em 16 partes e três cortes assimétricos, um desenho se move como um bicho [negrito meu] criando combinações infinitas”.

Bicho é o nome da antológica peça de Lygia Clark, produzida no final da década de 1950, aberta à manipulação do “experimentador”, palavra que naquele tempo vinha em substituição de visitante, espectador, ambos os termos indicativos de passividade. A peça também derrubava o termo escultura, associado à ideia de algo imutável, a ser contemplado. Dobras, mais um livro-bicho de Andrés Sandoval, na condição de obra aberta à manipulação e ao aleatório, como queria Haroldo de Campos, relaciona-se com o debate e transformação da escultura, com a literatura de Julio Cortázar, de O jogo da amarelinha, livro-mosaico, estrutura movente, entre tantas outras realizações da passagem dos anos 1950 para os 60 que abalaram a arte moderna. 

Vontade construtiva

Ainda no tocante às artes visuais, cabe mencionar a série Gibi, já perto de 1970, de autoria de Raymundo Colares, delicados livros constituídos por páginas de papel de seda coloridos, que se conectam diretamente com Dobras e outros livros de Sandoval. Colares correspondia aos quadros da “vontade construtiva” de que falava Oiticica em sua explicação sobre os rumos da arte brasileira pós-neoconcretista; as páginas de seus livros eram monocromáticas e, por serem cortadas em variações losangulares, fragmentavam o espaço. A simples passagem das páginas produz composições abstrato-geométricas, semelhantes a uma sucessão de pinturas e desenhos de extração Op, contrastes e gradações de cor e forma, com a grande diferença de se produzirem pelo folheio.

Ao contrário de Gibi, que oferece os mesmos resultados para quem se põe a experimentá-lo, Dobras é caleidoscópico. O formato das folhas, conquanto obedeça ao padrão retangular dos livros, é tensionado pelos planos de cores esmaecidas, opacas quando mais fortes, entrelaçados entre si com importância nivelada. Para realizá-las, o artista empregou canetas Posca, cuja tinta combina secagem rápida com ótima cobertura. 

O leitor desses campos de cores é convidado a ultrapassar a experiência temporal garantida pelo folhear

A coloração esmaecida faz pensar em Volpi, se este houvesse investido em composições orgânicas e abrisse mão de sua característica pincelada. Também como Volpi, tudo é feito à mão livre, e quando aparecem páginas com círculos brancos sobre azul e rosa, ou círculos vermelhos e azuis sobre folhas brancas, não têm a resolução precisa de um compasso — a sensível oscilação da forma sugere luas suspensas no céu, flutuando,  mais ou menos suscetíveis à gravidade. A cada movimento de folhas, o livro estampa nas duas páginas composições equilibradas e graciosas, com os planos disputando lugar entre si, à maneira de certas telas de Miró — e, no Brasil, dos guaches de pequeno formato de Loio-Pérsio, grande artista, mas que talvez o próprio Andrés não conheça.

Não existe solução entre fundo e figura, os planos fluem como animados por tensões internas, brotam-lhes saliências, inflam, avançam em conformações serpentinadas, escorrem, abrem caminhos nos outros planos, são partidos como frutas que deixam ver as camadas de polpa até o coração das sementes, espiralam-se como o desenvolvimento de caules, espalham-se como uma gota derramada sobre o papel. 

Junte-se a tudo isso as linhas retas traçadas, essas sim, à régua, fendendo algumas páginas em verticais paralelas às laterais e em diagonais que permitem dobras sem extravasar os limites do livro. Reside justamente aí o caráter caleidoscópico de Dobras,  “redobrada surpresa redobrado prazer”, como o celebra o mestre Augusto de Campos, num poema manuscrito em branco por Andrés no verso do livro. O leitor desses campos de cores é convidado a ultrapassar a experiência temporal garantida pelo folhear, conjugando a esse gesto o verbo dobrar, com o qual ele bascula as páginas, remonta os planos de cor com encontros que podem ser harmoniosos ou verdadeiras colisões com os planos situados no verso da página ou na página subsequente.

Dobras é um livro infantil? Arrisco-me a dizer que essa categorização é antes uma necessidade das livrarias e um guia para os pais, tão insuficiente e discriminatória quanto as divisões entre arte erudita e arte popular. O que existe é arte e aquilo que não merece essa qualificação. Andrés Sandoval vem realizando “livros de artista” diferenciados. Sorte nossa que sejam muito mais acessíveis que as outras modalidades artísticas.  

Quem escreveu esse texto

Agnaldo Farias

Curador e professor da FAU-USP, é autor de Arte brasileira hoje (Publifolha).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.