Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Livrarias negras

Livreiros e editoras resistem em imensa adversidade para garantir que uma rica herança e produção cultural tenham reconhecimento

01nov2023 | Edição #75

Já não me lembro quando foi que o meu fascínio pelos livros começou. O que consigo buscar na memória é a euforia e o deslumbramento que senti quando cheguei da escolinha e avistei, em cima da mesa de jantar, a coleção completa de livros do Monteiro Lobato, em dezesseis volumes, lançada pela editora Brasiliense no final da década de 70. (Não vamos entrar aqui em polêmicas sobre o autor, coisa que não convém ao texto de hoje.) O fato místico, o momento do encontro com o livro, na verdade, a emoção daquele momento ficou guardada, pontuada na vida.

A vontade por uma livraria veio mais tarde, mas permaneceu como sonho latente, como algo quase que da esfera do impossível diante de urgências de sobrevivência para uma mulher negra jovem. Já numa feira literária, depois de um caminho percorrido e distanciamento do complexo do impostor, é que comecei a verbalizar e projetar esse sonho em papel e metas. E, assim, numa confluência de destinos, encontrei dois amigos que toparam a aventura de ser livreiros no Brasil.

Esse preâmbulo pode parecer descolado, e até um tanto narcísico, para falar de livrarias negras no Brasil, não fosse o fato de eu ter me visto nas páginas de A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2020), do professor de sociologia da Unicamp Mário Augusto Medeiros da Silva, relançado pela Edições Sesc com a inclusão do capítulo “Pequena história sociológica de livrarias e editoras negras (1972-2020)”.


A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2020), de Mário Augusto Medeiros da Silva

Ao contar essa história, Medeiros nos conduz por uma rota de redescobrimento, na qual reposiciona e celebra a memória da contribuição negra para a trajetória de livrarias e livreiros, e da difusão do livro e da leitura no país. De modo algum me senti pioneira ao decidir desbravar o universo livreiro. Já havia iniciativas tanto de livrarias quanto no mercado editorial que me referenciavam. No entanto, as linhas pelas quais o autor navega nos apresenta um passado mais antigo do que pensamos, que passa pela problemática dos registros dessas iniciativas.

As páginas do livro apresentam vivências que me deslocaram para frente de um espelho no qual me enxerguei como parte de muitas outras que me antecederam e que caminhavam a mesma estrada, mesmo que não de mãos dadas.

A vontade por uma livraria era algo quase impossível diante de urgências para uma mulher negra jovem

O que fica evidente é que livrarias e livreiros negros têm desempenhado um papel fundamental na promoção da literatura, privilegiando autoras e autores negros brasileiros e estrangeiros. Como bem pontua Medeiros, a partir de entrevistas, essas iniciativas foram pensadas como pontos de encontro, lugares de produção da cultura não exclusivamente negra, mas onde o negro fosse a figura central e imprescindível. 

O perfil dessas livreiras converge: a maioria não vem de famílias com relação no mercado livreiro ou editorial, são mulheres de perfil universitário. Além disso, as características dos empreendimentos também se fundem: a itinerância e as discussões circulares sobre a necessidade de um espaço físico e as dificuldades para mantê-lo; as tentativas de diversificar o comércio para atrair públicos diversos; a relação com movimentos e expoentes intelectuais negros e, portanto, tendo no ativismo antirracista um alicerce; a preocupação e o engajamento com a literatura e a produção intelectual negras acessíveis ao público.

O autor afirma que “o dilema entre a paixão pelos livros, apoios intermitentes dos movimentos negros e a necessidade de financiar um comércio livreiro é uma constante de todas essas experiências”. Algumas das apresentadas se firmaram como instrumentos do movimento social negro, pontos de difusão e de encontros. Medeiros ainda traz luz para iniciativas de não negros, mas aliadas históricas “da autoria negra brasileira”. Num capítulo breve, o autor indica questões a serem aprofundadas — uma generosidade imensa, se pensarmos em linhas de pesquisa que podem seguir a partir desse estudo.

Agenda antirracista

Um ponto a chamar atenção é o do problema da sustentabilidade dos projetos. Se a resistência é uma marca importante, é fundamental pensar além, a partir da compreensão de que uma agenda antirracista demanda ações e incentivos objetivos e concretos. Esses livreiros atuam na ponta, em itinerância, mesmo quando instalam espaços físicos, compreendendo que têm de estar onde o leitor está, principalmente pensando no público almejado por esses projetos.

As leis 10.639 e 11.654, editadas em 2003 e 2008, influenciaram um despertar e uma ampliação do interesse pela produção de autoria negra. Contudo, os incentivos econômicos para que essas atividades permaneçam, se estruturem e transcendam o público ainda são escassas, para não dizer nulas. Livreiros e editoras negros resistem em imensa adversidade. E estamos falando de projetos essenciais para garantir que uma rica herança e produção cultural tenham reconhecimento.

Entre trocas com o autor, descobri que minha livraria funciona ao lado de onde ficava uma das livrarias que movimentaram o cenário da literatura e das artes negras nos anos 90, a Griot. Ao receber essa notícia, senti imensa alegria e, ao mesmo tempo, frustração por ter essa memória sequestrada. O que me fez pensar que a retomada histórica dessas experiências é fundamental para a reconstrução da sociedade. A memória é um farol para projeções e avanços. Obrigada, Mário.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.