Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

A égua do apocalipse

‘Poco hombre’ é expressiva antologia do chileno Pedro Lemebel, cronista das travestis e dos desvalidos, do barroquismo e da cafonália

18maio2023 | Edição #70

Dissidente entre dissidentes, Pedro Lemebel viveu e escreveu para devolver ao mundo o incômodo que o mundo lhe infligiu. Uma justa questão de reciprocidade para quem foi tanto odiado pelo Chile cúmplice de Pinochet quanto discriminado entre os inimigos do ditador — talvez por não contemporizar com a brutalidade de uns e a miopia de outros. Cronista de travestis e desvalidos, do barroquismo e da cafonália, de gays e mapuches, Lemebel morreu em 2015 consagrado nas margens da literatura, da cultura e da política chilenas, territórios a que foi fiel sem se tornar clichê do “marginal”.

Em 2013, quando participou, em São Paulo, da Balada Literária e do festival Mix Brasil, Lemebel ainda era pouco conhecido fora do circuito universitário. No ano seguinte, o e-book Essa angústia louca de partir (Cesárea) reuniria dez crônicas em tradução de Alejandra Rojas Covalski. Com exceção de publicações esparsas, só agora se edita uma antologia abrangente de sua obra. Seria o caso de dizer que Poco hombre chega “com atraso”, oito anos depois da morte do escritor. Mas antes tarde do que mais tarde. Talvez o Brasil de hoje, sequelado pelo fascismo institucional e sob ameaça diária dos fascistas da esquina, possa compreender melhor a contundência do autor que, em “Manifesto”, seu texto mais conhecido, afirma: “Falo pela minha diferença”.

Poco hombre é retrato complexo de um escritor e intelectual mais importante do que sugere o ubíquo elogio de Roberto Bolaño, para quem o autor de Adiós mariquita linda não precisou escrever poesia para ser “o melhor poeta” de sua geração. Antes de se dedicar quase exclusivamente à escrita, Lemebel foi insolente artista visual. Com Pedro Casas, formou em 1987 o coletivo Yeguas del Apocalipse. As ações capitaneadas pela dupla, documentadas no site yeguasdelapocalipsis.cl, interpelavam desde a ditadura da política mais tradicional à afirmação dos movimentos gay. Vem dessa época a imagem marcante de “Las dos Fridas”, em que a dupla reencena o célebre autorretrato duplicado da artista mexicana.

Lemebel morreu em 2015 consagrado nas margens da literatura, da cultura e da política chilenas

O sentido da performance jamais o abandonou ao apostar na oralidade como forma de instabilizar a cultura escrita, para ele instrumento de poder “mais do que de conhecimento”. Por isso, tão impressionante quanto lê-lo é ouvi-lo em leituras que, no rádio e ao vivo, sublinhavam a dramaticidade e o humor das “crônicas urbanas”. Nesse tipo de intervenção breve, destinada à imprensa e às vezes próxima da crônica brasileira, consiste o essencial de sua obra, reunida em sete volumes publicados entre 1995 e 2012 dos quais Poco hombre é uma generosa seleção — 73 textos que comprovam a tese de Ignacio Echevarría, organizador e prefaciador, que destaca como Lemebel “resiste tenazmente” a “todo pacto com a ordem”.

“Eu poderia escrever com clareza, poderia escrever sem tantas firulas, sem tanto redemoinho inútil”, diz Lemebel na declaração de princípios que é “À guisa de sinopse”. Continua:

Poderia melhorar o idioma enfiando no rabo minhas metáforas corroídas, meus desejos asquerosos, minha cabeça pervertida de mariluz ou marisombra […] para que o mundo me torne global, exportável, traduzível até para o aramaico, que para mim soa como um peido florido. […] Mas eu não me chamo assim, inventei um nome para mim com levada de tango maricueca, bolero roquenroll ou vedete travestona.

Dedicada a “contrabandear” fala e valores populares para meios cultos, a escrita de Lemebel é exuberante em imagens rebuscadas, surpreendentes e hilárias. O Stonewall, por exemplo, palco do histórico confronto da militância gay com a polícia de Nova York em 1969, é descrito como “um barzinho escuro, santuário da causa homossexual onde a sodomia turística vem depositar suas oferendas florais”.

Sobre Santiago, ele escreve:

Nesse vale fértil do Mapocho se instalou a casta mestiça que deu origem a seus habitantes pálidos de pobreza, meio pretos de fuligem, nanicos e de cabelo espetado pela selvagem herança mapuche, além de alguns castanhos koleston e outros loirinhos metidos que jamais descem dos bairros de Santa María de Manquehue e La Dehesa. Que nunca pegaram um ônibus, muito menos o metrô, para não contrair a lepra assalariada.

“Louco afã”, que dá título a um dos livros, de 1996, é a meu ver um dos momentos mais impressionantes de sua escrita, em forma e fundo. Lido em 1991 num encontro entre estudantes e Félix Guattari na Arcis, universidade de Santiago ligada ao Partido Comunista chileno, é pensamento puro — e também marca, na antologia, as muitas soluções virtuosas da tradução de Mariana Sanchez: 

Driblando os gêneros binários, esquivando-me do postal sépia da família e sobretudo escamoteando a vigilância do discurso. Ou melhor, aproveitando suas lacunas e silêncios; entrementes e entredentes, reciclando uma oralidade do detrito como alquimia excretora que demarca no gozo esfincteriano sua crônica cor-de-rosa. […] Como minoria, digo que um risco ou ass-terisco é grafado em sua micropolítica constrita. Estíptica por estética, desmontável em sua viadagem stripper, remontável em sua desviadagem oblíqua, politizante para se maricompreender.

Pedro Lemebel é um continente a ser desbravado. Estão disponíveis no Prime Video Lemebel (2019), documentário de Joana Reposi Garibaldi, e Tengo miedo torero (2020), adaptação de sua única incursão no romance. Dirigido por Rodrigo Sepúlveda, o filme traz um arrebatador Alfredo Castro no papel de La Loca del Frente, travesti politicamente alienada que, na década de 80, estabelece uma delicada e trágica relação com um jovem guerrilheiro. No documentário, uma profusão de entrevistas e o registro dos últimos momentos de Lemebel ajudam a dimensionar a grandeza e coragem do sempre repetido “Manifesto”:

Não sou Pasolini pedindo explicações
Não sou Ginsberg expulso de Cuba
Não sou um viado disfarçado de poeta
Não preciso de disfarce
Essa aqui é a minha cara
Falo pela minha diferença
Defendo o que sou

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.