Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

O mundo como ele é

Ensaios de David Harvey abordam as transformações no desenvolvimento desigual na atualidade

01maio2020 | Edição #33 mai.2020

Em inglês, há uma expressão para designar as regras de funcionamento do mundo. Na linguagem coloquial, é utilizada para marcar a ingenuidade daqueles que ainda são mal versados nos padrões conforme as coisas acontecem ou nos tipos de comportamento mais habituais ou frequentes. De forma literal, ways of the world poderia ser traduzido como “os caminhos do mundo”, os sulcos marcados na terra que fazem com que as coisas aconteçam de determinada maneira e não de outra, que trazem um princípio de realidade diante do qual é possível se adaptar ou se rebelar. Em português, as expressões que se valem do termo “mundo” geralmente indicam mudança e não estabilidade, como “as voltas que o mundo dá”. Algo mais próximo do sentido original seria “a vida como ela é”.

O novo livro de David Harvey tem justamente este título, Ways of the World. Em português, é lançado pela Boitempo como Os sentidos do mundo. É mesmo uma expressão de difícil tradução. Nesse livro, Harvey pretende organizar a lógica de funcionamento do mundo em que vivemos, explicitar os padrões que desvelam a dinâmica de uma grande engrenagem. É, certamente, um objetivo ambicioso. Ao mesmo tempo, não é uma empreitada que Harvey tenha decidido começar apenas agora. Não é exagero dizer que todos os seus livros podem ser traduzidos pela busca pelos pontos que conformam constelações de sentido escondidas pela superfície das coisas. O fio condutor é apenas um: as transformações na lógica de reprodução do capital.

Crises de superacumulação

Os sentidos do mundo é uma coletânea de textos de David Harvey, publicados em períodos distintos, sendo a maioria deles das décadas de 1970 e 1980. É, portanto, uma ótima porta de entrada para o pensamento do autor britânico. Mas é também mais do que isso. O livro propõe diversos entrelaçamentos no tempo. Cada texto é seguido de um comentário do próprio Harvey, em grande parte de ordem pessoal ou contextual. Assim, Os sentidos do mundo é uma reflexão sobre as transformações na trajetória de um dos mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. Por outro lado, o livro também pretende responder às questões mais prementes do desenvolvimento desigual no presente. A tarefa é duplamente ambiciosa.

Como os escritos da década de 1970 podem ajudar a entender os “caminhos do mundo” que levaram a China a consumir 6,651 bilhões de toneladas de cimento entre 2011 e 2013, em contraste com os 4,405 bilhões de toneladas utilizados pelos Estados Unidos no século 20, como indica a introdução do novo livro? Por mais que Harvey faça comentários para atualizar a importância de cada um dos textos, cabe ao leitor ligar os pontos que podem vincular a trajetória intelectual à compreensão do mundo de hoje.

Boa parte dos textos presentes na obra se vale do esquema explicativo cunhado por David Harvey para as crises de superacumulação. Elas são seguidas de intervenções urbanas em escalas sem precedentes, com níveis crescentes de endividamento. Esse é um componente fundamental do “ajuste espacial” (spatial fix), em que o espaço urbano é criado e destruído para aplacar essas desestabilizações massivas.

A democracia fica como que em suspenso em boa parte dos textos escolhidos pelo autor

O encadeamento histórico destas crises se vale de pontos de apoio recorrentes na obra de Harvey. O ponto inaugural é a Paris de Haussmann e todas as transformações urbanas decisivas que marcaram tanto a modernidade quanto um modo de funcionamento do capitalismo. A crise de 1848 da Paris do Segundo Império leva a esse tipo de solução, com boulevares abertos a golpes de cutelo para absorver a sobreacumulação e dar uma resposta ao desemprego, ao mesmo tempo em que milhares de pessoas foram desalojadas de maneira forçada.

O segundo ponto histórico costuma ser a Nova York de Robert Moses, do pós-Segunda Guerra Mundial, em que demolições e o modelo rodoviarista “arrasa-quarteirão” se consolidam como padrão de intervenção urbana e também de modernidade. O último ponto de apoio é a China dos dias de hoje, com cidades construídas inteiras do zero como tentativa de aplacar, por meio do espaço construído, os problemas da sobreacumulação.

Questionamentos

Se eu pudesse tomar um café com David Harvey, teria muitas perguntas a fazer. Retomar as transformações urbanas da Paris do século 19 é voltar à origem dessas crises? Como interpretar os saltos entre Paris, Nova York e China — essas são apenas ilustrações do argumento ou funcionam como espécie de tipo ideal em que as principais características são exageradas para que tenhamos uma lente útil de análise? Perguntaria, ainda, sobre como é possível ligar as pontas do primeiro texto de Os sentidos do mundo (“Teoria revolucionária e contrarrevolucionária na geografia e o problema da formação de guetos”) e o último (“O capital evolui”). Há mais de quatro décadas entre eles e ambos mobilizam as noções de reforma e revolução. Por quais transformações não passaram os sentidos de reforma e revolução nesse meio -empo?

Perguntaria ainda sobre a relação atual entre exploração, por um lado, e despossessão e espoliação, por outro. Isso porque há, nessa coletânea, um texto sobre a acumulação por despossessão, que retoma o principal argumento de O novo imperialismo, livro publicado aqui no Brasil pela Edições Loyola. Também perguntaria por que só um dos textos do livro trata — e ainda por cima de maneira rápida — sobre o direito à cidade. Não seria uma chave das mais relevantes para entendermos as revoltas urbanas diante dos “caminhos do mundo”?

Por fim, questionaria como as transformações na democracia entram nesse esquema. A democracia fica como que em suspenso em boa parte dos textos escolhidos por Harvey, aparecendo apenas em algumas formulações que indicam as resistências a esse modo de funcionamento. Não é possível pensar o “mundo como ele é” sem pensar, ao mesmo tempo, como ele poderia ser. Harvey certamente concordaria que não se trata de simplesmente explicar como o mundo funciona, o que levaria a uma atitude conformista de adaptação ao estado de coisas, mas de mobilizar a crítica na compreensão da nossa época. Seria, provavelmente, um longo café.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.