Quadrinhos,

Fogo no quadrinho

HQ mostra os bastidores da maior perseguição aos gibis da história, ocorrida nos anos 50 nos Estados Unidos

12ago2021

A liberdade de expressão no Brasil é uma história cheia de tropeços. Sob o governo de Jair Bolsonaro, ganha contornos cada vez mais sinistros. Em 2021, o país entrou para a lista vermelha do Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa dos Repórteres sem Fronteiras. Tentativas de silenciar opositores nos meios de comunicação e nas artes avançam de carona na escalada de uma nova ultradireita radical, evangélica e miliciana que se sente ameaçada por expressões de pensamentos contrários à sua ideologia.

Os quadrinhos não ficam de fora da caçada. Para citar apenas um exemplo, em 2019, o gibi Vingadores: a cruzada das crianças foi censurado a pedido do então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, por exibir dois garotos se beijando. A perseguição não é de hoje, tampouco uma exclusividade da “patrulha ideológica dos valores da família brasileira”.

Em 1954, nos Estados Unidos, a liberdade no universo dos gibis foi seriamente ameaçada com a criação do Comic Code Authority (Código dos Quadrinhos), ferramenta de autocensura que passou a controlar o conteúdo das publicações. A vigia era feita pela Comics Magazine Association of America, uma associação norte-americana de revistas em quadrinhos. O mercado teve que aderir, e muitas publicações não resistiram. Até editoras brasileiras embarcaram na onda: um selo com a frase “Aprovado pelo código de ética” passou a ser estampado na capa dos gibis.

Os bastidores dessa trama pouco conhecida são contados em detalhes em Fredric, William e a amazona, cuja publicação no Brasil ganha ainda mais relevância graças às semelhanças com nosso momento político. A perseguição aos quadrinhos nos Estados Unidos se desenrolou em meio ao clima paranoico da inquisição anticomunista do macarthismo — o senador Joseph McCarthy e seu “gabinete do ódio” enxergavam comunistas por toda parte, mas principalmente na indústria de entretenimento, e desencadearam uma caça às bruxas do que consideravam uma corja de delinquentes subversivos.

O livro narra a biografia cruzada de dois personagens curiosos e singulares que tiveram atuações importantes em lados opostos da história: o psiquiatra alemão Fredric Wertham, que via nos quadrinhos uma ameaça às crianças, e o psicólogo William Moulton Marston, inventor do detector de mentiras e criador da célebre personagem Mulher Maravilha. O primeiro, com suas teorias inspiradas em Freud, de quem foi discípulo, quase arruinou o mercado norte-americano de HQ. O segundo, ao colocar uma mulher como protagonista das histórias, expandiu a indústria e atraiu o público feminino para um universo até então quase exclusivamente masculino.

A trama parte de dois momentos distintos de 1922: a chegada de Wertham a Nova York, já com devaneios sobre a relação entre miséria e delinquência, e o julgamento em que Marston testa pela primeira vez seu polígrafo — que pouco depois utilizaria nos estúdios de Hollywood, onde atuou como consultor, identificando com a ajuda de seu aparelho os filmes a que o público desejava assistir.

Mais de uma década depois, trabalhando como psiquiatra forense em julgamentos de assassinos em série, Wertham depara com o emblemático caso de Albert Fish, condenado à morte por tortura e assassinato de mais de cem crianças e adolescentes. Wertham passa então a prestar atenção nos gibis da época, carregados de sangue, crimes e violência, e a questionar o efeito dessa leitura nos jovens. “Nunca medimos o bastante os danos que uma educação precária e um meio cultural falho podem causar”, afirma em um trecho da HQ.

Na outra ponta, Marston vai se embrenhando na indústria do entretenimento e logo para na sede da National Periodical Publications, editora responsável por publicações como Batman e Superman. Lá, começa a atuar como consultor para identificar os desejos dos leitores, mas também recebe a missão de despertar o interesse do público feminino pelos gibis. Assim, em dezembro de 1941, o mundo dos quadrinhos ganha uma nova super-heroína: a Mulher Maravilha. Inspirada na lenda das guerreiras amazonas da mitologia grega, ela chega às bancas na revista All Star Comics poucos dias antes de o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor colocar os Estados Unidos definitivamente na Segunda Guerra Mundial.

Paranoia

O livro tem seu ápice na página ilustrada com uma grande fogueira de gibis, introduzindo um período de histeria e paranoia, entre 1947 e 1956, causado em grande parte pela atuação de McCarthy, o caçador de comunistas. Em paralelo, Wertham começa a escrever sua obra mais conhecida, Seduction of the Innocent (Sedução do inocente, 1954), em que liga os quadrinhos à delinquência. O livro é lançado no mesmo dia em que o Senado começa a debater os efeitos nefastos dos quadrinhos — e em que Wertham presta depoimento, expondo sua teoria de que eles despertam fantasias sádicas nos jovens: “Nenhum lar estará em segurança enquanto existirem quadrinhos de crime”. Os debates desembocam na aprovação do lamentável Código dos Quadrinhos e, a partir dele, alguns gêneros de HQ passam a ser recusados por donos de bancas de jornal — na época, o principal local de venda dos gibis —, temerosos da repressão policial.

Lainé encerra a história no momento da retomada dos super-heróis como forma de driblar os censores, em 1956. Mas a liberdade da indústria só veio de fato após quase cinquenta anos, em 2001, quando a Marvel anunciou que abandonaria o selo do código de ética. Uma década depois, em 2011, a DC Comics encerrou definitivamente o Comic Code Authority.

Durante a era Trump, os Estados Unidos viveram um breve revival desse passado obscuro e conturbado — uma onda que felizmente já passou. Não podemos dizer o mesmo sobre o Brasil, onde ainda vivemos sob a sanha autoritária do bolsonarismo, uma tosca versão do macarthismo.

Quem escreveu esse texto

Carlos Minuano

Jornalista, escreveu Raul Seixas por trás das canções (BestSeller).