Psicologia,

O mal-estar no século 21

Ensaios de interpretação da cultura e da sociedade de Freud merecem ser relidos à luz da conjuntura atual, especialmente a brasileira

01fev2021

A edição dos textos sociais de Freud na coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud traz o melhor da teoria psicanalítica da cultura. Para os que consideram a psicanálise uma peça do passado, que deveria ser sepultada e esquecida, a má nova será perceber como as questões permanecem atuais, bem como os conceitos e termos mobilizados para enfrentá-las. Para os que enaltecem Freud, indiferentes à análise crítica dos aspectos datados de sua obra, assim como para seus continuadores e intérpretes, a má nova é que, sem uma análise histórica suplementar, muitos argumentos soam anacrônicos. Por isso, são textos que merecem ser relidos à luz da conjuntura atual, especialmente a brasileira.

A maior parte compreende o período posterior à famosa conferência em Budapeste, “Caminhos da terapia psicanalítica” (1918), logo depois da Primeira Guerra Mundial, momento da virada política de Freud, sob impacto da Rotes Wien (Viena Vermelha), impulso social-democrata para ampliar o acesso à saúde e diminuir a pobreza. O engajamento dos intelectuais envolveu a criação da Clínica Pública de Psicanálise e colocou um psicanalista em cada pré-escola para escutar famílias destroçadas pela guerra. 

Nos anos 1920, e mais acentuadamente com a ascensão do nazismo, nos anos 1930, o campo de provas da psicopatologia psicanalítica migrou para a psicologia das massas. Os descaminhos da religião, da ideologia e das massas para o paradoxo da cultura concorrem para que ela ao mesmo tempo apazigue e regule os nossos conflitos e induza o sacrifício, a renúncia e a infelicidade que alimentam nossas neuroses. A cultura, que tanto nos promete, com seus ideais de amor e progresso, pode facilmente ser objeto de ódio e destruição. A correspondência com Albert Einstein, reproduzida em “Por que a guerra?” (1933), é um bom exemplo desse esforço de urgência para pensar a violência persistente nos laços humanos. 

Os problemas examinados demandam nossa atenção hoje, mais do que nunca, quando se discutem o retorno de ideias autoritárias, a repetição de retóricas fascistas e a ascensão do ódio contra a cultura. As respostas de Freud para cada um desses três problemas enfatizam a grupalização destrutiva, a culpa superegoica e as ilusões religiosas. A busca projetiva de culpados e inimigos para saciar nossos sacrifícios e renúncias mal elaborados será a hipótese de “O mal-estar na cultura” (1930). A persistência das ilusões religiosas como fonte de consolo e segurança contra o desespero e o desamparo narcísico será posta em confronto com exigências maiores, impostas pela ciência e pela razão, ao lado das quais Freud situa a psicanálise, em “O futuro de uma ilusão” (1927). Por fim, a tentação das ideias autoritárias estará sempre presente, sobretudo em momentos de alta complexidade e risco identitário, quando aumenta o impulso de nos entregarmos à identificação, ao funcionamento de acasalamento entre massa e líder, tal como se esclarece em “Psicologia das massas e análise do Eu” (1921).

Modelo crítico

“O mal-estar na cultura” é um mapa para entender como o discurso sobre o imperativo de felicidade pode nos levar ao ódio e como pequenas conquistas podem se inverter em grandes punições. O texto mais lido e citado de Freud é um modelo crítico para uma teoria social antropológica de um tempo, capaz de discutir a nossa diferença em relação à natureza e ao processo histórico de individualização entre cultura e civilização. A partir de uma discussão ética sobre a felicidade; os métodos de evitação do sofrimento, da religião à intoxicação química ou estética; passando pela tecnologia, que cria as distâncias que, por outro lado, acaba suprimindo, ele chega à ideia de que a mesma cultura que nos protege do sofrimento é responsável pelo sentimento de culpa e pela destrutividade que a caracteriza. É o texto definitivo sobre a patologia universal do ser humano. Os impedimentos à realização de pulsões e os ideais que mobilizamos nisso seriam a causa e o efeito reatualizador do sofrimento. 

Contrapondo a gênese de valores como ordem, limpeza e beleza aos meios para sua realização, tais como justiça, liberdade e espírito de comunidade, Freud reatualiza o seu diagnóstico sobre a cultura: ruim com ela, pior sem ela. Ele aborda o papel do amor, da sexualidade e da relação entre os gêneros para culminar no caráter trágico das transgressões e das interdições que nos impomos, fonte e origem de nossa atitude ambivalente perante a própria cultura. Divididos entre a crueldade sádica do Supereu e o masoquismo vitimista do Eu, entre a pulsão de separação, representada pela morte, e a pulsão de união, dada pela vida, descobrimos que a pior forma de lidar com o mal-estar é negá-lo como condição existenciária. Daí será um passo para transformar o medo em culpa, a culpa em ressentimento e o ressentimento em ódio pelo outro. 

‘O mal-estar na cultura’ é o texto definitivo sobre a patologia universal do ser humano

“O futuro de uma ilusão” deveria ser lido por todos os que se atordoam com os debates digitais e que parecem aturdidos com a violência de certos grupos religiosos. Freud enfrenta um interlocutor religioso tomado por paixões. As satisfações narcísicas, propiciadas pelos ideais, são a base para o sentimento de que elas estão mal distribuídas, e que quanto menor a cultura com a qual nos identificamos, maior a destrutividade em relação às demais, a ponto de um único indivíduo ser irrestritamente feliz com o cancelamento para si das restrições culturais: um ditador ou tirano. O desamparo dos homens, tendo a natureza no seu encalço, inclusive a natureza das doenças, daria o molde para a produção dos deuses. 

A tese mais interessante para o nosso tempo diz respeito ao fato de que a religião é um sistema de ilusões. Ilusões não são necessariamente erros ou falsidades: são uma qualidade de nossas crenças, não de nossos saberes. Crenças dependem de um determinado e necessário não sabido (um absurdo, por exemplo) e de uma estrutura de ficção (que cria um “como se” sobre o mundo). Ilusões podem estar em contradição com uma realidade presente, mas não com uma descoberta futura. Contra isso, Freud declara que ignorância é ignorância: dela não advém nenhum direito a crer em coisa nenhuma. O argumento da validade consolatória das ilusões deveria ser submetido à inspeção dos tipos de crença contidos nelas, em geral de natureza infantil. Ilusões que se mostram verdadeiras não são fáceis de achar, mas, como elas existem, abre-se a porta para o confronto e para a disseminação de versões delirantes ou desejantes do mundo e dos fatos. Estamos diante de um forte arsenal para enfrentar as fake news e a pós-verdade. O que Freud chama de “educação para a realidade” implicaria uma cultura que “não oprima mais ninguém” e a capacidade de “suportar que nossas expectativas se revelem como ilusões”.

“Psicologia das massas e análise do Eu” é leitura obrigatória para entender os caminhos do mundo digital. Freud analisa a formação de massas naturais e artificiais como o Exército e a Igreja. Ele propõe três tipos de identificação, encontradiços na clínica e na vida social: a identificação com o pai ancestral, a identificação com o desejo e a identificação regressiva (formadora dos sintomas). A intrusão do pai na política, a descrição de como as massas se identificam com o líder, colocando-o no lugar do Ideal, pareando e homogeneizando os “eus” no interior da massa, continua a ser eficaz. As massas digitais mantêm essa gramática, acelerando a tendência a suprimir responsabilidades. A identificação cega com o líder, a influência hipnótica que este é capaz de exercer sobre as massas, inclusive contra seus interesses, sua imunidade à contradição por argumentos, sua regressão cognitiva e seu fortalecimento pelo ódio ao inimigo externo seguem com plena validade política. 

O volume traz preciosas notas de Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares. Inclui ainda prefácio de Iannini e Jésus Santiago, e posfácio de Vladimir Safatle sobre o impacto do corpo na teoria social freudiana. 

Mais do que nunca, o espírito das luzes que presidiu a aparição da psicanálise como acontecimento histórico parece repetir a constelação que lhe deu origem, o modelo crítico que ela inspira a pensar o campo da razão e da ciência, com os demônios e as idiossincrasias que o habitam e que, por vezes, o devoram por dentro. 

Quem escreveu esse texto

Christian Dunker

Psicanalista, escreveu Reinvenção da intimidade (Ubu).