Política,

Exorcismo revolucionário

Livros de Frantz Fanon e Aimé Césaire são essenciais para lutar contra o racismo e o colonialismo atuais

01dez2020

O que Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon (1925-61), nos convida a pensar e fazer? Uma maneira de começarmos um livro, assim como terminá-lo, é refazer as perguntas do autor. De um modo mais geral, Fanon faz um convite explícito para interrogarmos como a violência dos processos de colonização e do racismo faz que a humanidade das pessoas negras seja rasurada. Na busca pela nossa humanidade, o racismo impõe a nós, pessoas negras, que busquemos máscaras brancas. De acordo com Fanon, nessa relação de opressão e violência sistemática e cotidiana, as pessoas brancas também estão desumanizadas. Tema este que continua bastante atual no Brasil, ainda mais no momento em que vivemos momentos de lutas antirracistas e de questionamento dos privilégios da branquitude. 

O livro chega, assim, em boa hora por aqui, em uma nova edição caprichada da editora Ubu, com tradução de Sebastião Nascimento em colaboração com Raquel Camargo — em meados deste ano, a Ubu já havia publicado os escritos psiquiátricos de Fanon com o título Alienação e liberdade, também com tradução de Nascimento. É como a escritora e artista Grada Kilomba escreve no final de seu prefácio a essa edição (que ainda conta com posfácio de Deivison Faustino e textos complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy): “E talvez esta seja a obra que o Brasil mais precisa, neste momento, como eu precisei anos atrás, para desobedecer à ausência e para viver na existência”. Em tempo: essa obra encontrava-se esgotada no país desde a edição lançada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2008 — uma obra que estava ausente, mas que agora volta a estar presente.

Mas, antes, é preciso situar Fanon. Num registro, ele foi um homem negro de classe média nascido na Martinica, ilha caribenha ainda hoje controlada pela França, que viveu um conflito racial violento na metrópole. Ele estudou medicina na França e se especializou em psiquiatria. Sofreu injustiças de base racial durante toda a sua vida universitária e depois como psiquiatra. Um evento injusto e bastante marcante foi a recusa do seu trabalho de conclusão de curso. A banca obrigou que ele provasse que era capaz de ser “isento” e “universal”. Daí, o trabalho intitulado inicialmente Ensaio sobre a desalienação do negro ter que ser substituído num prazo que não chegava a trinta dias — e que depois deu origem a Pele negra, máscaras brancas. Fanon escreveu uma nova “tese” em poucos dias. 

O caráter combativo e o espírito revolucionário de Fanon fizeram-no tomar uma decisão considerada pouco provável para um jovem psiquiatra. Preferiu deixar a Normandia, na França, onde era chef de servisse de um hospital psiquiátrico, para viver em Blida, cidade na Argélia, então colônia francesa, assumindo o hospital local. O filósofo agiu com a coerência performática de um revolucionário, isto é, são as ações que funcionam como fiadoras do discurso, não o contrário. Ele saiu da metrópole para ficar cara a cara com a alienação produzida pelos processos de colonização. 

Se sua hipótese era de que os sofrimentos psíquicos eram condicionados por fatores sociais, o mergulho num hospital psiquiátrico de um mundo colonizado era inevitável — essas reflexões originaram um outro título importante de Fanon, Os condenados da terra (1961), que também merece uma nova edição por aqui. De acordo com Fanon, a teoria é inseparável da práxis política. Portanto, quem escreveu Pele negra, máscaras brancas foi um homem comprometido com o enfrentamento da violência colonial. É um pensador que deveria ser mais comentado como referência do movimento antimanicomial:  ele foi acusado de negligência diante de uma suposta fuga de pacientes do hospital quando uma enfermeira viu as alas vazias. Na verdade, Fanon e todos os homens internados tinham ido a uma partida de futebol. Esse filósofo e psiquiatra fazia discursos e implementava reformas no cotidiano.

Mascaramento

O sociólogo Deivison Faustino fez um belo retrato dos impactos do pensamento fanoniano no livro A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos (Intermeios, 2020). Nessa obra, encontramos o filósofo, que também é uma espécie de porta-voz do mundo colonizado, inaugurando uma ruptura radical na área das ciências humanas. Fanon é, portanto, precursor de muitos caminhos, e suas confluências estão presentes na escola decolonial, nos estudos pós-coloniais e nos estudos culturais. 

Pele negra, máscaras brancas problematiza com radicalidade a produção do outro, como o sujeito negro está impedido de conjugar o pronome “eu”. O trauma psíquico colonial esmiuçado por Fanon não deixa dúvidas: o sujeito negro precisa de muitas máscaras brancas para existir, somente mascarado pode conjugar os verbos na primeira pessoa do singular. Como são muitas máscaras, o sujeito negro fica impedido de enxergar a si mesmo com o seu próprio olhar. 

O primeiro capítulo, intitulado “O negro e a linguagem”, descreve como as pessoas negras precisam aprender a língua da metrópole, não devem falar com sotaque se desejam ser reconhecidas como “gente de verdade”, o que implica também usar as categorias da colônia. A epistemologia, o sentido de mundo, o sistema explicativo, a cultura e todos os elementos que atravessam a linguagem estão colonizados, e as pessoas negras ficam impedidas de reconhecer, analisar e dizer a realidade por meio de uma linguagem que parta do reconhecimento da sua história e cultura. O sujeito negro vive, assim, a sua própria história como se fosse um estrangeiro. 

O segundo e terceiro capítulos tratam de relações inter-raciais, mais especificamente nos relacionamentos heterossexuais entre homens negros e mulheres brancas e entre mulheres negras e homens brancos. Mais uma vez estamos diante de uma máscara. O trauma psíquico colonial é muito violento e convoca o sujeito negro para uma fantasia racista. A dignidade do sujeito afetivo negro é ser amado por uma pessoa branca. Esse amor, advindo de uma branca ou de um branco, faz com que o homem negro e a mulher negra sejam dignos de enxergar a si como pessoas de verdade. O trauma psíquico colonial percebe no amor branco a redenção, um modo para que o sujeito negro se afirme como gente. A  humanidade das pessoas brancas humaniza gente negra, ensina o trauma psíquico do racismo. 

Nos outros capítulos, Fanon não foge do eixo. Dentre suas conclusões parciais, o racismo é um fenômeno construído que, sendo enfrentado, desloca as pessoas brancas do seu lugar de “universalidade”. Pele negra, máscaras brancas é uma leitura indispensável para a formação intelectual de quem se interessa por compreender como os fantasmas da branquitude e, por sua vez, do colonialismo assombram todas as sociedades. Fanon faz um convite para um exorcismo revolucionário.

A desrazão europeia

O nome de Aimé Césaire (1913-2008) está associado ao movimento Negritude, no qual ele e outros intelectuais e artistas negros de países colonizados pela França ressaltaram, a partir da década de 1930, a importância de valorizar a cultura negra como forma de resistência ao racismo e aos processos e desdobramentos da colonização. Nascido na Martinica como Fanon, Aimé Césaire era um jovem estudante na França quando, ao lado do senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001) e Léon-Gontran Damas (1912-78), nascido na Guiana Francesa, foi um dos articuladores do Negritude, com a publicação do periódico L’Étudiant Noir (O estudante negro), em 1935. Césaire foi, inclusive, o responsável por cunhar o termo “negritude”, Damas foi o difusor do conceito no Caribe francês, enquanto Senghor divulgou o movimento na metrópole.

Mas a popularidade do Negritude, ou, ainda, o “fato político” que o colocou na agenda do mundo acadêmico, ocorreu mais de uma década depois, em 1948, quando o filósofo branco francês Jean-Paul Sartre prefaciou a Anthologie de la Nouvelle Poésie Nègre et Malgache (Antologia da nova poesia negra e malgaxe), com o texto “Orfeu Negro”. Esse movimento influenciou intelectuais e artistas nascidos na África francófona e nas colônias francesas nas Antilhas, ainda que o escritor nigeriano Wole Soyinka e o filósofo camaronês Marcien Towa, além do próprio Fanon, tenham feito críticas ao conceito de negritude. Em certa medida, Soyinka, Towa e Fanon questionaram a ideia de uma negritude universal. 

Foi nesse contexto que Césaire produziu uma obra relevante para os movimentos de independência dos países africanos. No ano de 1950 veio a público o Discurso sobre o colonialismo, que chega ao Brasil pela editora Veneta, em versão ilustrada por Marcelo D’Salete (de Angola Janga), tradução de Claudio Willer e, no final do volume, uma cronologia de Rogério de Campos. Referência de Fanon em Pele negra, máscaras brancas — como se vê pela epígrafe já na “Introdução” do livro: “Falo de milhões de pessoas a quem artificiosamente inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o estremecimento, a genuflexão, o desespero, a subserviência” —, Discurso sobre o colonialismo tem expressa uma das teses fundamentais nessa fórmula simples: “colonização = coisificação”. Césaire argumenta que a colonização envolve pilhagens, estupros, intimidação e violência sistemática, e, numa medida estruturante, tudo isso passa pela coisificação das pessoas colonizadas. Uma denúncia contundente da obra está em recusar o caráter universal daquilo que o poeta denomina de “civilização ocidental”.  

Césaire convoca o leitor a refletir sobre o caráter indefensável da Europa. O princípio da gestão colonial é uma violência brutal e sistemática sustentada pela religião, economia, ciência e política. A religião cristã desconsiderou a alma dos africanos; a economia foi baseada na exploração escravagista, formato da plantation e em um modelo que não deve nada aos “campos de concentração”; a ciência estipulou que só os brancos pertenciam à espécie humana efetivamente; a política passou a operar tomando a população negra por duas atribuições: como mão de obra e como inimiga do projeto de nação autóctone nas colônias à medida que reivindicavam sua humanidade. 

Ele argumenta que Adolf Hitler é o modelo do gestor político europeu. De acordo com o pensador, Hitler vive no homem branco europeu colonizador. Pois bem, o que o europeu branco “não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco”. Hitler implementou a estrutura colonial. O colonialismo é um projeto violento de desumanização. 

A hipocrisia europeia articulou cristianismo e civilização, promovendo “em nome de Deus” uma carnificina, uma hiperexploração radical da vida dos que desconheciam a “verdadeira fé”. Ora, é nesse emaranhado em que ciência e religião se juntam para justificar a exploração político-econômica que o colonialismo, inseparável do racismo, promove um mundo incivilizado que afirma o seu contrário.

O debate promovido por Discurso sobre o colonialismo é incontornável para a compreensão do que podemos denominar de sistema-mundo. As sociedades contemporâneas do Norte global acumularam capital excedente após a exploração sistemática e brutal do que, em categorias analíticas contemporâneas, chamamos de Sul global. África, América, Ásia e Oceania foram exploradas pela Europa.

Assim, em muitas dessas sociedades, as elites eurodescendentes passaram a implementar a dominação e o controle por novos formatos do colonialismo. Depois do banho de sangue do etnocídio de povos indígenas na América e do sequestro de africanos, o século 20 foi a continuidade dessa exploração diante da conivência de brancos, que mantiveram muitos porta-vozes da ética e da civilidade calados.   

Por isso, Césaire nos convoca a reconhecer que a apologia sistemática da civilização europeia como o melhor modelo de organização político-econômica e científica do planeta é a defesa de um crime. Todas as pessoas que estão do lado da Justiça, da Democracia e do Bem-Estar comum precisam reconhecer no colonialismo, assim como no racismo, um dos obstáculos mais resistentes ao estabelecimento de uma sociedade plural. 

O colonialismo e os seus efeitos colocam as questões de classe à luz do dia também. Para o pensador, o modelo burguês do capitalismo promove armadilhas terríveis através do fetiche da mercadoria. A obra argumenta, por fim, que o discurso da colonização é um sintoma incontornável de que a Europa é palco de decadência e enfermidade. Podemos dizer que Césaire vincula à doença um mal-estar europeu diante do mundo que os leva a agir com hostilidade e violência contra o “outro” que a própria Europa inventou. De acordo com ele, Discurso sobre o colonialismo mostra que o projeto civilizatório europeu é, na verdade, a desrazão do mundo. Césaire, como podemos constatar, não está de todo errado.

Quem escreveu esse texto

Renato Noguera

Escreveu Mulheres e deusas (HarperCollins Brasil).