Politica,

Exercícios de imaginação

Pensadora alemã sustentava que era preciso subir e descer as escadas do pensamento sem o apoio do corrimão das ideologias

01jun2021

“Pare e pense.” No outono de 1955, essa frase deu a partida, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, para o mais original curso ministrado por Hannah Arendt. Ela não era desconhecida em Berkeley. Ao contrário, a publicação de As origens do totalitarismo, em 1951, forneceu à autora, quase de imediato, um reconhecimento acadêmico incomum. O inglês continuava sofrível, as aulas geralmente percorriam os pensadores a quem ela sempre retornava — Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Montesquieu, Locke, Tocqueville, Marx — e os cursos vinham embalados em títulos como “Palestras: de Maquiavel a Marx”; “Vico e a teoria da história”; “Proposições morais básicas na política: São Paulo, Santo Agostinho, São Tomás, Dante, Maquiavel, Francis Bacon”; “Política e filosofia: Platão, Aristóteles, Parmênides”. Chovia aluno. E Arendt devia sentir-se zonza com a forte impressão que provocava entre a estudantada ansiosa e interessada que acorria às suas aulas e palestras, em qualquer campus onde pisasse.  

Mas, em Berkeley, ela exagerou — o curso era incomum demais. Destinado aos universitários de graduação, tinha o formato de um seminário semanal com duas horas de duração, intitulado “Questões contemporâneas”. Logo na primeira sessão, Arendt expôs o roteiro do que aconteceria ao longo do semestre; deve ter provocado calafrios. Os alunos precisariam construir a biografia de um personagem imaginário — homem ou mulher — nascido em fins do século 19, interessado em determinados eventos políticos do século 20. O biografado não poderia ser nem protagonista nem ativista político; tampouco seria um alienado, alguém que se posicionasse confortavelmente à margem da sociedade. Era apenas um observador: vivia o cotidiano, escrutinava os acontecimentos. 

Foi só o começo. Arendt formulou marcos de referência panorâmicos para os eventos que o personagem teria necessariamente de observar. O cardápio incluía “Primeira Guerra Mundial”, “Pós-guerra”, “Espírito da revolução”, “Totalitarismo”, “Segunda Guerra Mundial”, “Formas de resistência”. O último marco, “Mundo contemporâneo”, foi subdividido em “Sociedade de massas” e “Ciência e política”. De quebra, preparou uma bibliografia insólita até mesmo para seus próprios padrões. Combinava história, teoria política e um bocado de literatura: entre outros, Faulkner, Brecht, Hemingway, T. E. Lawrence, Pasternak, Orwell, René Char, Camus.    

Vento

“Pare e pense”, o gatilho que fazia avançar os debates nos seminários, não traçava necessariamente um caminho linear ou progressivo acerca dos marcos que estabeleceu; sua função era outra. Pensar não promove o nosso distanciamento da realidade, mas altera nossa visão ordinária do real. O pensamento é como o vento, tira tudo do lugar, ela explicava, retomando a bela metáfora de Sócrates. Essa é sua força crítica e corrosiva: destruir opiniões, preconceitos, regulamentos, doutrinas, hábitos mentais. Por essa razão, Hannah Arendt nunca deixou de insistir: não existem pensamentos perigosos; perigoso é o próprio pensamento. 

Pensar proporcionava ao aluno a experiência de travar um diálogo de si consigo mesmo que, visto de perto, não tem nada de solitário ou silencioso. No fim das contas, o pensamento é sem som, mas feito de palavras que surgem diante dos olhos, na forma de imagens, metáforas, conceitos. Em razão disso, insistia Arendt, contar uma história sobre o curso de uma vida é o modo apropriado de pensar como essa pessoa se moveu no mundo, como foi afetada pelo tempo que lhe foi dado viver, e o que ela tem a dizer sobre os nossos assuntos contemporâneos. A narrativa é a linguagem própria ao pensamento, capaz de desvendar qual tipo de luz o passado oferece em nossos tempos sombrios, escreveu, em 1968, na introdução a Homens em tempos sombrios

Contudo, é o caso de ficar atento. Afinal, pensar não é trivial. O desafio do pensamento começa na disposição de fazer uso de uma mentalidade alargada. Abrir a própria cabeça permite ao sujeito levar em conta o horizonte do outro e suas circunstâncias, conversar com diversos pontos de vista e compreender que o mundo é comum porque cada pessoa o vê de diferentes perspectivas. Arendt entendia que este é o sentido propriamente político do pensamento — sua relação íntima com o pensamento dos outros. Por outro lado, “pensar com uma mente alargada”, como ela cuidou de insistir em suas Lições sobre a filosofia política de Kant, “significa treinar a própria imaginação para sair em visita”. Apenas a imaginação acerta posicionar a alguma distância de nós o que está tão próximo que não conseguimos enxergar com nitidez; e só ela consegue aproximar suficientemente o remoto para que possamos ver o que está longe demais no tempo e tratar disso como se fosse um assunto nosso. 

O enredo do curso em Berkeley passava longe dos programas universitários comuns; ela o nomeava “exercícios de imaginação”. E decerto é mais complicado do que isso. Naquele outono de 1955, Arendt deu um jeito de abrir aos estudantes a via de acesso ao seu próprio método de pensamento, a maneira como fundamentava sua reflexão e colocava em questão os conceitos seguros, as regras de orientação, os fundamentos da ideologia — algo que nunca publicou e guardava para si própria. Chamava a isso de “pensar sem corrimão”. 

Somente em novembro de 1972, em um colóquio sobre sua obra, em Toronto, e em resposta à escritora Mary McCarthy, Arendt revelou, em público, sua metáfora particular: “Eu a chamo de pensar sem corrimão. […] Ou seja, à medida que você sobe e desce os degraus você sempre pode segurar-se ao corrimão para não cair. Mas nós perdemos esse corrimão. É assim que digo para mim mesma. E é isso, de fato, o que tento fazer”. Os seminários eram perturbadores e desafiadores: enfiado nas questões que expunha havia o gesto meio sorrateiro de tirar o corrimão dos alunos. Sem corrimão, a imaginação revela todo o seu poder e acende a visão clara que permite ver as coisas em seus muitos ângulos. Só então pensamos e agimos.

O território do pensamento podia até ser familiar, mas ela jamais considerou fácil descrever como ingressava nele — em Toronto, declarou, a sério, que ainda “estava tentando esclarecer-se sobre esse negócio de pensar”. Mas a publicação, no Brasil, de escritos póstumos, com o título Pensar sem corrimão, permite ao leitor conhecer as chaves que ela usava para iniciar a experiência do pensamento, acionar sua metáfora particular e construir o significado e a narrativa que resultavam dessa atividade. O livro reúne uma coleção expressiva de textos de natureza diversa e inéditos entre nós, escritos entre 1953 e 1975, ano de sua morte: ensaios, entrevistas, aulas, artigos, resenhas, discursos.

Lidos em conjunto, esses escritos contam muita coisa sobre sua disposição de pensar algo novo sem recorrer à barra de apoio das categorias firmes e inquestionáveis. Nem é preciso procurar nas entrelinhas. Em alguns textos, o leitor vai reconhecer, de imediato, o modo inquieto como ela calibrava o gosto pela análise dos fatos, seu ponto de vista “concreto e prático”, como costumava dizer, para examinar as condições em que andava o mundo. Arendt seguia atentamente as notícias em torno de acontecimentos como “Vietnã”, “Guerra Fria”, “Revolução Cubana”, “Bomba atômica” ou “Sit-ins” — um tipo de manifestação de bloqueio passivo em favor dos direitos civis no Sul dos Estados Unidos. Mas não se perdia em abstrações conceituais nem enfeixava um punhado de eventos para deduzir um fundamento comum. Ao contrário, ela demandava ao seu “espaço de pensar” levar a sério e em separado cada um desses assuntos. Só depois cuidava de tentar esclarecer se existiam ramificações, com uma reflexão conduzindo a outra. 

Uma série diversa de textos confirma o método da autora ao repetidamente dar voz aos fenômenos da guerra e da revolução. Arendt considerava essas duas questões políticas de enorme importância, fosse pela inter-relação entre elas, fosse pela necessidade de mantê-las separadas para que pudessem ser esclarecidas; e, é claro, também pelo que enxergava estar envolvido nessa reflexão. A Primeira Guerra Mundial foi uma luta pelo poder em escala mundial que alterou as concepções tradicionais das operações militares e revelou a combinação da tecnologia com a ideia de “guerra total”, em que o civil e o soldado não eram mais distinguíveis — mesmo antes da existência do armamento nuclear, escreve Arendt, a guerra se tornou politicamente uma questão de vida ou morte, uma ameaça à existência da humanidade. O objetivo inerente da revolução, em contraponto, sempre foi a liberdade e nada além dela. Os principais obstáculos a essa compreensão, ela insiste, são as ideologias — liberalismo, conservadorismo, socialismo, comunismo. Em termos políticos, a grande questão em jogo no mundo moderno que todos partilhamos é a da liberdade vs. a tirania, reafirmou categórica nesses escritos, e tantas vezes depois.

Texto flexível

Continuando a ler, porém, o leitor vai perceber, na composição dos ensaios compilados para o livro, o modo como o pensamento, solto sem um corrimão de amparo, se agita, corre e se expande na imaginação de Hannah Arendt. Na origem do gênero, ao final do século 16 na Europa, ensaio é tentativa. Um texto flexível em que o autor, em busca de subsídios para compreender a situação que está vivenciando, encara um assunto sobre o qual não se tem certeza prévia e empreende uma reflexão orientada também por seu caráter propriamente especulativo. “A Revolução Húngara e o imperialismo totalitário” talvez seja um de seus ensaios mais corajosos. Foi escrito em 1958, após a derrota dos revolucionários provocada pela invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia — a aliança militar formada pelos países do Leste Europeu e comandada pela União Soviética. Os húngaros iriam lhe ensinar algumas questões, e ela escreveu esse ensaio para homenagear aqueles que pagaram tão caro ao mostrar como as coisas realmente são sob um regime totalitário.

Quando soube que a Hungria exigia liberdade, Arendt quase não conseguiu acreditar no que estava acontecendo. A Revolução Húngara colocou em cena a questão da liberdade nos países socialistas e no bloco soviético, e ela verdadeiramente se entusiasmou. Havia ali uma novidade extraordinária: a irrupção da liberdade a que se associava a máxima espontaneidade. Pela primeira vez na história, um país do Leste Europeu se levantou em massa contra o “imperialismo totalitário”, o conceito que Arendt construiu para explicar o processo de conquista de territórios pela União Soviética e sua preparação para o totalitarismo por meio da formação de Estados-satélites. Os húngaros se insurgiram ao mesmo tempo que tentaram instaurar uma ordem política completamente nova: uma república democrática, sustentada pelo sistema de conselhos populares e operários e fundada sobre um núcleo de valores do mundo público. O ensaio é notável sobretudo pelo modo como Arendt introduz na narrativa uma espécie de dobradiça no tempo. Ela mostra, é claro, a dor e a indignação diante de Budapeste ocupada pelas tropas soviéticas ao final de doze dias da revolução; mas, simultaneamente, sua escrita convoca a força da memória que confere permanência às ações humanas para mostrar a saída, preservar o espírito da revolução e assegurar um futuro à liberdade.  

A reflexão sobre a permanência das soluções totalitárias está no centro da obra de Hannah Arendt

“À memória de Rosa Luxemburgo” era a dedicatória que Hannah Arendt pretendia acrescentar a esse ensaio. Sua identificação com a personagem era enorme e ela seguramente deve às ideias políticas de Rosa Luxemburgo seu próprio entendimento criativo sobre a espontaneidade revolucionária, o valor dos conselhos populares como forma de organização capaz de revigorar o exercício da política e a vitalidade do republicanismo democrático como o único abrigo para a liberdade no mundo contemporâneo. Não por acaso os alunos, em Berkeley, se acostumaram a chamá-la de “Hannah-Rosa” — e também não era à toa que ela se encantava todas as vezes que escutava o apelido.  

A dedicatória, porém, esbarrou na má vontade do editor. A figura de Rosa não se encaixava no tema do livro e seria preciso reformular para explicar o que a autora tencionava dizer com isso, ele objetou. Irada, Arendt suprimiu o acréscimo — “não se pode explicar nada numa dedicatória”, escreveu em resposta. E completou: “A dedicatória não pode ser reformulada, porque seria necessário explicar que Luxemburgo não era nem verdadeiramente socialista nem comunista, mas ‘apenas’ defendia justiça, liberdade e revolução como a única possibilidade para uma nova forma de sociedade e Estado”. A resposta irritada, porém, revela ao leitor aquilo que, no final das contas, as fazia tão semelhantes: “Pobre Rosa! Ela já está morta há quarenta anos e ainda ‘não se encaixa em lugar algum’”.

Alguém que não se encaixa entre o corrimão das ideologias, de um lado, e o das verdades inquestionáveis, de outro, é bem-vindo ao Brasil — especialmente nos dias atuais. A reflexão sobre a permanência das soluções totalitárias sobrevivendo à queda dos regimes nazista e stalinista e brotando de dentro das sociedades democráticas contemporâneas está no centro da obra de Hannah Arendt. “Para combater o totalitarismo”, ela alertou em “Sobre a natureza do totalitarismo: uma tentativa de compreensão”, “basta compreender uma única coisa: o totalitarismo é a negação mais radical da liberdade.” E cravou: “Contudo, quem não se mobiliza quando a liberdade está sob ameaça jamais se mobilizará por coisa alguma”. Entre nós, o espaço para a liberdade está a cada dia um pouco mais apertado. É hora de tirar o corrimão. Para pensarmos sobre o que estamos fazendo hoje. No Brasil. 

Quem escreveu esse texto

Heloisa Murgel Starling

Historiadora, escreveu Ser republicano no Brasil Colônia (Companhia das Letras).