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Da esquerda para a direita

Intelectuais progressistas formulam boas perguntas sobre a ascensão do conservadorismo, mas ecoam Olavo de Carvalho ao arriscar respostas

27maio2019

A direita brasileira tem um longo passado, mas sua vitória na eleição de 2018 foi encarada por muitos como se o conservadorismo brasileiro tivesse brotado de um punhado de tuítes de Carlos Bolsonaro e da página de Olavo de Carvalho no Facebook. Passado o choque, os meios acadêmicos começam a se debruçar sobre duas questões correlacionadas: onde estava esse direitismo todo que ninguém havia percebido? E até que ponto a nova direita não é mera reciclagem de discurso?

Na busca por respostas, a esquerda parece ter saído na frente, até por instinto de sobrevivência. Diversos livros identificados com o campo progressista estão surgindo. É meritório que tenham ao menos a coragem de oferecer alguma explicação, mesmo sem o distanciamento necessário no tempo.

O resultado, contudo, é irregular. Há bons momentos de análise histórica e social do discurso conservador, sobretudo quando se tenta entender o papel de institutos e organizações da sociedade civil. Mas até aqui a autocrítica da esquerda é praticamente inexistente, e o tom geral é de ressentimento, algo até certo ponto compreensível.

O ódio como política – A reinvenção das direitas no Brasil é uma coletânea de quinze pequenos artigos tentando explicar a emergência da “nova direita” em áreas como a economia, o Judiciário e a religião. “Ao longo dos últimos anos, o campo progressista assistiu perplexo, atrapalhado e inativo à reorganização e ao fortalecimento político das direitas”, diz a organizadora do livro, a socióloga Esther Solano Gallego: “Se quisermos de fato lutar contra as direitas devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la, para depois combatê-la”.

O propósito de conhecer antes de combater é nobre, mas em alguns casos reforça-se a caricatura. Em um dos textos, o autor, que assina com o pseudônimo Carapanã, enxerga, numa evidente simplificação, a nova direita como um movimento que recusa qualquer forma de democracia. Não há dúvida de que muitos governantes de extrema direita desejariam eliminar eleições, calar a imprensa ou atentar contra a separação de Poderes. Mas todos, com a exceção do húngaro Viktor Orbán, seguem as regras do jogo e sabem que não têm força política para rasgá-las (mesmo Orbán enfrenta um contrapeso na União Europeia).

Em pesquisa na periferia de Porto Alegre, Bolsonaro surgiu como símbolo de identificação juvenil masculina, papel de Nike e Adidas no passado

Outro texto, de coautoria dos economistas Esther Dweck (UFRJ) e Pedro Rossi (Unicamp), prega que as políticas de austeridade nada mais são do que a imposição de interesses de classe dos capitalistas. Segundo essa tese, recessão e desemprego são benéficos para empresários porque reduzem pressões salariais, aumentam o lucro e geram pressões para futuros cortes de impostos. A seguir essa lógica, o governo Dilma Rousseff, responsável pela maior recessão da história do país, foi uma bênção para o empresariado, e o papel da Fiesp na defesa de seu impeachment, com campanha do pato e tudo, não passou de um grande mal-entendido.

Não à toa, os melhores artigos são os que preferem, em vez de arriscar respostas definitivas, apresentar pistas e hipóteses. Um deles, das antropólogas Rosana Pinheiro-Machado (UFSM) e Lúcia Scalco (UFRGS), mostra uma pesquisa feita na periferia de Porto Alegre com jovens que migraram do lulismo para o bolsonarismo. Como explicar tamanha mudança? Uma hipótese, dizem as autoras, está na semelhança entre os polos. “Os limites entre a esquerda e a direita, o lulismo e o bolsonarismo e a esperança e o ódio são mais turvos do que se pode imaginar à primeira vista.”

Bolsonaro, segundo a pesquisa, cresceu não apenas por suas ideias, mas pelo que representa culturalmente para os jovens. O presidente assim teria se tornado um símbolo de identificação juvenil masculina, mesmo papel exercido no passado por grifes esportivas como Nike e Adidas.

Professor de sistemas da informação da USP, Márcio Moretto Ribeiro também traz questões instigantes. Ao analisar o comportamento da nova direita no Facebook, sugere que o binômio esquerda-direita não é o mais apropriado para classificar o Fla-Flu das redes, mas sim a chave “antipetismo vs. antiantipetismo”. A opção sui generis, explica, se justifica pela falta de um componente racional ao debate, muitas vezes definido pelos estereótipos. “As narrativas que estruturam o debate sugerem uma dinâmica em que cada grupo se define pela negação da caricatura que faz o polo oposto.” Após varrer centenas de páginas, Ribeiro conclui que definir essa nova direita ainda demandará muito estudo. “Identificar o antipetismo com a direita tradicional é equivocado, pois a grande maioria dos manifestantes é a favor de serviços públicos e gratuitos.”

Kombi liberal

Outro livro que tenta entender o mesmo fenômeno é A nova direita — Aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo, de Flávio Henrique Calheiros Casimiro, cujo grande mérito é oferecer um histórico dos movimentos liberais no Brasil desde os anos 1980. Mesmo assim, seu autor, professor de história econômica do Instituto Federal do Sul de Minas Gerais, não resiste a usar expressões mofadas como “burguesia industrial” e “capital-imperialismo”.

Mas sua pesquisa é importante para mostrar que o conceito de “nova direita” é relativo. Casimiro resgata entidades que começaram a defender o pensamento liberal na economia no início da década de 1980. São diversas, algumas seminais, como o Instituto Liberal, criado em 1983, e o IEE (Instituto de Estudos Empresariais), do ano seguinte, cuja carta de princípios pregava o “ideal democrático de liberdades individuais subordinadas ao Estado de Direito, defendendo, de forma honesta e convicta, a liberdade de empreender e trabalhar”. O iee foi o criador do Fórum da Liberdade, evento anual que serviu como incubadora de entidades hoje na linha de frente da direita liberal, como o Instituto Millenium, o Instituto Mises Brasil e o MBL (Movimento Brasil Livre). Paulo Guedes, o hoje poderoso ministro da Economia, era um frequentador assíduo do Fórum.

O autor apenas tangencia, contudo, a grande história da direita brasileira dos últimos anos: o casamento de interesses do liberalismo econômico com o conservadorismo cultural que ajudou a gerar o fenômeno Bolsonaro (Guedes costuma dizer que foi a “união da ordem com o progresso”).

O livro é uma análise de como, ao longo das últimas décadas, instrumentos de pressão se organizaram para manter o Estado comprometido com uma visão pró-mercado. Sua tese é que há uma “complementaridade” de interesses entre o Estado e os chamados Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs), ou seja, entidades, institutos e centros de pesquisa “burgueses”. “A diversidade e multiplicidade de Aparelhos Privados de Hegemonia da nova direita no Brasil demonstram o processo de ampliação do Estado”, resume Casimiro. O autor não vê momentos de ruptura nesse processo de captura, mesmo com a diversidade de partidos que ocuparam a Presidência nas últimas décadas.

É verdade que há evidentes linhas de continuidade na política macroeconômica do final do governo Itamar Franco (1992-94) ao primeiro mandato de Dilma (2011-14), mas é preciso um grande esforço para enxergar influência ininterrupta da direita sobre o aparelho de Estado durante todo esse período. Como diz Helio Beltrão, fundador do Mises Brasil, havia no país apenas uma “Kombi liberal” até bem pouco tempo atrás.

Mais reveladora do abismo cognitivo que se formou no país é a avaliação do livro de que a nova direita dominou culturalmente o Estado e que “busca naturalizar e universalizar seus interesses de classe como consenso”. Dá medo imaginar os adjetivos que Olavo de Carvalho usaria para qualificar o autor do livro ao ler esse trecho. Para o filósofo e seus seguidores, o que acontece é exatamente o oposto: quem capturou o Brasil com seu ideário contrário às tradições judaico-cristãs foram os “marxistas culturais”, que se traduzem em secularistas, globalistas, feministas, ambientalistas etc.

Não há prova maior de nossa fratura ideológica atual do que ver um lado acusar o outro de controlar o Estado como se fosse uma marionete.

Depois do rosa e do vermelho

Pensar as direitas na América Latina é uma coletânea de artigos reunidos a partir de um colóquio na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em agosto de 2018. A premissa é situar, numa perspectiva regional, o fenômeno direitista no Brasil.

Os artigos que tratam da Argentina mostram como a ascensão de uma nova direita está intimamente ligada à maneira como experiências anteriores são vistas. A referência, obviamente, é às ditaduras no continente. O contraste entre a forma como o Brasil e o país vizinho enxergam seus respectivos regimes militares define muito do cenário conservador em cada país. Ali, o repúdio aos abusos cometidos pelos generais e à sua incompetência gerencial, muito mais intenso que aqui, funciona como uma espécie de barreira de contenção contra extremismos.

Como mostra o cientista político Sergio Daniel Morresi, não é apenas o caso de não existir por lá uma figura como Bolsonaro (ao menos por enquanto). Na Argentina, a direita, representada atualmente pelo presidente Mauricio Macri, preocupa-se menos em exercer uma “tutela moral” da sociedade e concentra-se em cultivar valores como honestidade e eficiência. Uma espécie de direita João Doria do outro lado do rio da Prata.

Nesse sentido, será interessante acompanhar a eleição presidencial de outubro, em que Macri, um fracasso na gerência macroeconômica, provavelmente terá que substituir a pregação vazia da eficiência pela demonização do kirchnerismo.

Além de artigos retratando a conjuntura no Chile, no México e no Uruguai, o livro traz pontos de vista originais sobre o tema, como o papel de institutos e jovens lideranças liberais na emergência da direita latino-americana. A Fundação Internacional para a Liberdade, think tank criado pelo peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura, recebe atenção especial num artigo de Maria Júlia Jiménez, doutoranda em ciência política da Unicamp. Vargas Llosa hoje parece um dinossauro se comparado ao novo direitismo das redes sociais, mas segue sendo respeitado por ter mantido acesa a chama liberal durante o longo inverno da direita nos primeiros quinze anos do século 21, quando o continente abraçou as ondas rosa (mais moderada, representada por governantes de centro-esquerda como Lula, Michelle Bachelet, no Chile, e Tabaré Vázquez, no Uruguai) e vermelha (os ditos bolivarianos: Chávez e Maduro na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Cristina Kirchner, o equatoriano Rafael Correa).

Plínio Corrêa de Oliveira, da Tradição, Família e Propriedade, tentou expandir os tentáculos do grupo ultraconservador aos Estados Unidos

Já a importância de novos autores de best-sellers da direita, como a guatemalteca Gloria Álvarez e o argentino Andrés Oppenheimer, parece um tanto superestimada em artigo de Julián Castro-Rea, professor da Universidade de Alberta, no Canadá. “[Os livros] Reforçam na mente dos leitores desse tipo de obra a convicção de que somente esses autores têm o monopólio da verdade, mediante referências herméticas a outro tipo de fonte em uma retroalimentação ideológica circular.” É de se perguntar qual autor, especialmente nesse subgênero de autoajuda política, não se sente dono da verdade, à esquerda ou à direita. É fácil exagerar a relevância de escritores liberais, uma vez que, ao pregarem para convertidos, sua repercussão é barulhenta.

O livro também dedica uma seção à direita religiosa, embora foque na Igreja Católica, que hoje perdeu para os evangélicos protagonismo no meio conservador. Dois artigos tratam do grupo TFP (Tradição, Família e Propriedade). Em um deles, o professor Rodrigo Coppe Caldeira e o mestrando Victor Gama, ambos da PUC-MG, discorrem sobre os tentáculos estabelecidos pelo grupo ultraconservador nos Estados Unidos. Em especial, relatam como o fundador da entidade, Plínio Corrêa de Oliveira, enxergou no conservadorismo americano uma oportunidade e uma ameaça. Oportunidade porque no palco da direita religiosa é impossível prescindir da participação americana; ameaça porque o conservadorismo ao norte da linha do equador se apresentava por demais secular para o gosto do brasileiro.

É curioso: esse movimento católico tem hoje paralelos evidentes com a tensa convivência entre igrejas evangélicas e outros segmentos do conservadorismo que se apresentam com uma roupagem mais modernizante, como os liberais econômicos e os militares.

Mitos contra o mito

Por fim, a coletânea Brasil em transe — Bolsonarismo, nova direita e desdemocratização parte de uma tese forte: a apropriação do Estado pela nova direita, em diversas instituições, seria parte de um processo de retrocesso democrático — como indica o neologismo contido no título.

“A forte atuação de grupos conservadores no Parlamento e na sociedade, somada ao intenso ativismo — com viés conservador — do Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, passou a representar séria ameaça às liberdades e aos direitos individuais”, diz artigo dos coordenadores, Adriano de Freixo e Rosana Pinheiro-Machado.

A obra não ficaria deslocada se editada como caderno de teses de um congresso do Partido dos Trabalhadores. Afinal, ali estão repisados conceitos que fazem parte do discurso petista-padrão no que diz respeito à Lava Jato, à crise econômica, ao fracasso do governo Dilma, à prisão de Lula e finalmente à derrota eleitoral de 2018. Chama a atenção a defesa da ideia rasa e confortável, reverberada em círculos petistas, de que o partido foi desalojado não por ter perdido sustentação política no Congresso e levado o país a uma recessão histórica que corroeu seu apoio popular, mas sim porque a classe média não se conformou em ver não brancos nas universidades, pobres em aeroportos e empregadas domésticas com carteira assinada. Ou seja, Dilma teria caído pelos seus méritos, não pelos seus muitos erros. Da mesma forma, reforça-se o mito de que o PT foi perseguido pela Lava Jato, embora não conste que Eduardo Cunha, Sergio Cabral ou Beto Richa tenham sido filiados ao partido.

A Lava Jato é um instrumento dos Estados Unidos; Dilma caiu por não aceitar o jogo fisiológico; o impeachment foi um golpe urdido pelas elites e pela mídia (haja elite para entupir a avenida Paulista). Essas e outras máximas compõem uma obra que talvez tenha algum efeito para fins de convocação de uma militância machucada. Contudo, como análise de um fenômeno ainda não compreendido — o conservadorismo renascente —, é uma oportunidade desperdiçada.

Espera-se que, passada a raiva da esquerda, surjam trabalhos com uma avaliação mais clara dos erros cometidos e com melhores apontamentos para o futuro do que simplesmente bradar “Lula livre!” e “Foi golpe!”.

Quem escreveu esse texto

Fábio Zanini

Jornalista, escreveu Euforia e fracasso do Brasil grande: política externa e multinacionais brasileiras da Era Lula.