Poesia,

Os nomes próprios para um inventário

Leonardo Gandolfi convoca personagens criando experiências estilhaçadas em um espaço frágil, porém possível, de encontros

01jan2022

Desde o título, o novo livro de Leonardo Gandolfi, Robinson Crusoé e seus amigos, mostra-se um lugar bastante povoado. São muitas as pessoas que aparecem ao longo das páginas (Rita, Paulo, Lúcia, Marta, Paula, Isadora, Júlio, Bel, Pedro, Márcio). Também não são poucos os poemas que relatam situações vividas em grupo. Há, ainda, diversos poemas compostos com a participação de outras vozes (Clarice Lispector, Leopoldina de Habsburgo, Leonard Cohen, Omar Khayyam, Sérgio Sampaio, Cacaso, Luis Alberto de Cuenca, Rosa Montero) ou em diálogo explícito com o trabalho de outros artistas (Lydia Davis, Kaváfis), formando assim uma obra repleta de personagens.

Estranhamento e identificação

A convocação de tantas figuras tem, pelo menos, dois vetores: de um lado, a experimentação com recursos narrativos e dramáticos, que visam desestabilizar o discurso monolítico de um eu autocentrado; de outro, o empenho de organização de uma vivência singular, povoada por figuras, reais e/ou imaginárias, que se abrigam na memória do poeta. 

Com essas duas linhas, Gandolfi engendra um intrincado jogo de espelhos, dentro do qual encontramos repetições de versos, ideias e imagens que, embaralhados, colocam em causa as fronteiras entre estranhamento e identificação. Lemos na primeira versão de “Duas histórias”:

Vou contar duas histórias
a primeira
sobre alguém
que só entende a pergunta
quando ela é feita duas vezes
já a segunda
é a história de quem
não consegue repetir
a própria assinatura

Em Robinson Crusoé e seus amigos, portanto, o espelhamento entre os poemas não se constitui a partir de estruturas simétricas, que desenhariam semelhanças e oposições bem assentadas. Ao contrário, é como se as cenas do livro se projetassem em superfícies deformadoras, daquelas encontradas nos labirintos de espelhos dos parques de diversões antigos. Disso resulta uma espécie de encantamento infantil, dentro do qual a descoberta lúdica do mundo inclui também aspectos sinistros — algo evidenciado em poemas como “Minhas férias”:

Na próxima cena
a pequena Paula e sua mãe
e diante delas uma jaula
e na jaula uma tabuleta
e na tabuleta umas palavras
e na jaula umas palavras
e nas palavras umas letras
tudo isso sob o olhar
de desamparo da menina
da mãe e do dinossauro

Nesse labirinto de espelhos, o poeta é um ilusionista cuja inabilidade como prestidigitador acaba revelando a veracidade de seus próprios truques (“No tempo em que fui mágico/ só deixei duas vezes/ a cartola cair//…/ de dentro dela saiu um coelho/ que depois de três saltos sumiu”). A força autônoma do insólito faz com que o sujeito seja enredado pelas armadilhas que ele mesmo prepara, como na trapaça do gênio de “Previsão do tempo” ou na revisitação da infância de “Luis Alberto de Cuenca e seus amigos”. 

O poeta é um ilusionista cuja inabilidade como prestidigitador acaba revelando a veracidade de seus próprios truques

Nesse processo, o ser-estar-no-mundo é formulado como uma experiência estilhaçada, diante da qual os personagens aqui presentes ora flertam com a autodestruição (“não é fumar enquanto se espera/ o sono chegar/ mas sim fumar e dormir/ de uma só vez/ nem que para isso/ eu entre combustão”), ora apostam em alguma possibilidade de sobrevivência (“depois do mais vasto deserto/ aqui começa o resto da vida”).

Essa experiência estilhaçada incide também nos objetos em desagregação que permeiam o livro. Entre “folhas secas”, um “velho par de chinelos” e outros “caquinhos pelo chão”, é patente o esforço do poeta em registrar a existência de seres e coisas que, à primeira vista, parecem insignificantes. Com a mosca Albertina, de “Saída”, ou com o Pequeno Polegar, de “O caminho de volta”, nos aproximamos da perspectiva de sujeitos, por vezes, indefesos, assombrados pelos perigos de um universo desconfortavelmente grande, que se expande ainda mais diante das lacunas na relação familiar de “Muito tempo atrás numa galáxia distante”. Todavia, embora marcados por perdas e fraturas, os poemas de Robinson Crusoé e seus amigos evitam a dicção grave, fazendo, muitas vezes, troça dos embaraços da vida, como em “Fazer falta”:

Primeiro 
os sisos

Depois
o apêndice

Em seguida 
as amígdalas

Chegou a hora
do rim

O livro possui, assim, certo ar de inventário conscientemente desfalcado, como se o poeta fosse reunindo as peças de um quebra-cabeça, que, no entanto, não pode ser resolvido em sua totalidade. Essa impossibilidade, contudo, não é entendida como mera desvantagem, tornando-se ensejo para novos arranjos entre as peças disponíveis. 
Ao mesmo tempo, o lado incômodo dessa experiência estilhaçada não deixa o poeta perder de vista a desigualdade entre as figuras que evoca em seu livro. Afinal, após a destruição dos objetos de vidro e de porcelana, há algo de retórico na pergunta de “O problema da limpeza”:

adivinha quem
vai recolher
toda essa sujeira?

Em outra chave, mesmo a mutilação dos próprios sujeitos adquire conformações muito diversas, podendo ser tanto um motivo de embaraço (“A confusão de Júlio”) quanto uma sacrificial entrega ao fazer artístico (“Sérgio Sampaio”).

Assumindo para si todas essas disjunções, Gandolfi pensa seu inventário como um espaço frágil, porém possível, de encontro — algo perceptível em “Infância ou a caneca de ágata” (“Minha avó/ servia café/ dentro do poema/ dos outros// Agora/ ela está/ sentada aqui”), que resgata gestos e falas da avó (a mesma que trabalhou na casa de uma grande escritora?), ou em “Ciranda”, poema que aproxima os anseios de Henri Michaux, Walter Franco e da pequena Rosa, de três anos (“eu quero crescer/ e crescer até ficar/ bem pequenininha”). Um espaço que, curiosamente, se instaura como duração — ou seja, tempo —, internalizada no próprio processo de escrita, como aparece em “As enguias” (“este poema chega ao fim/ bem na hora do almoço”) ou, ainda, no poema que dá título ao livro (“Estou há algum tempo/ tentando escrever/ estas memórias”).

Nesse espaço-tempo dos poemas de Robinson Crusoé e seus amigos, as coisas podem continuar em movimento, como é explicitado em “Sem título” (“Depois de morrer/ nossas unhas/ e cabelos/ continuam a crescer/dentro do caixão// Só depois de morrer/ meu pai/ começou a crescer/ dentro de mim”). 

Enredo aberto

Mesmo na iminência de um acidente nuclear, em “Acelerador de partículas”, ou na inevitabilidade da queda de um balão, em “Ilha Misteriosa de Júlio Verne na versão de Clarice Lispector”, estamos sempre diante de um enredo ainda aberto — e não de seu presumível fim. 

“Não se preocupe com/ o dia de amanhã/ o dia de amanhã/ já tem com o que se preocupar/ basta a cada dia/ o seu próprio mal// #// Continua”, escreve Leonardo Gandolfi em “Minhas férias 2”.  

Porém, apesar de todo o mal, é no aqui e no agora cristalizados em cada poema que tudo, nesse inventário, “ainda está respirando”.

Antologia de Wallace Stevens é momento essencial na recepção do poeta em língua portuguesa

Quem escreveu esse texto

Renan Nuernberger

Escreveu Luto (Patuá).