Psicologia,

O ditador no divã

Encomendado durante a guerra, estudo psicológico de Adolf Hitler vira livro

01mar2019 | Edição #20 Mar.2019

Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, Walter C. Langer (1899-1981), psicanalista americano analisado por Anna Freud, recebeu a missão de elaborar um estudo psicológico de Hitler. Langer foi procurado pessoalmente pelo General William Donavan, então chefe do Escritório de Serviços Estratégicos (órgão anterior à cia), que acreditava na psicologia como ferramenta de informação de guerra. 

Acrescido de um prefácio, o relatório virou livro, lançado agora no Brasil. Antecipar-se às ações do Führer era o principal objetivo do estudo — e Langer previu que Hitler se isolaria, até o suicídio, à medida que os fracassos nazistas se tornassem evidentes. Também que se afastaria dos generais mais profissionais e inteligentes, capazes de confrontá-lo, para manter intactos seu poder e as próprias ilusões. 

Para o jornalista Eurípedes Alcântara, que assina o excelente prefácio, é questionável a importância de estudos psicológicos a respeito de mandatários com vocação para arrebatar as massas. Langer, porém, acreditava que algumas tragédias poderiam ter sido evitadas se o estudo tivesse sido feito com mais antecedência. 

Psicologia das massas

Ele percebeu que não era suficiente descrever a personalidade, listar as idiossincrasias, formular hipóteses patológicas, para daí prever atos — era necessário penetrar na natureza da relação entre líder e povo: demonstrar como os alemães, imersos na humilhação e na derrota da Primeira Guerra, encontraram seu messias. No ensaio Psicologia das massas e análise do eu (1921), Freud percorre o caminho que vai da análise do indivíduo à compreensão da sociedade ao afirmar que “a psicologia individual é simultaneamente psicologia social”. 

O encantamento e a sujeição ao líder — tese cara ao ensaio — originam-se na relação infantil de submissão ao pai, que tudo sabe e tudo pode. Em Minha luta, Hitler escreve que o povo é análogo às mulheres que buscam um homem forte para dirigi-las e submetê-las. As massas se sentiam possuídas por seus arrebatados discursos que prometiam gozo, poder e glória. Nunca questionaram sua aparência afeminada, nada ariana, por exemplo, ou a distância da própria família, com quem não se comunicou por uma década. É espantoso saber que o povo alemão via Adolf Hitler como um homem da paz.

Há também, no relatório, uma hipótese diagnóstica — bastante discutível — de psicopatia neurótica, que hoje seria considerada como “personalidade dissocial”. Tipificações diagnósticas são menos importantes do que realidades psíquicas — mais relevante é saber o que homens vivenciam e como pensam para agir. 

Pode parecer estranha a elaboração de um estudo na ausência do paciente. Porém, o método psicanalítico permite inferências, estabelece relações com casos semelhantes, aplica teorias a dados, procura padrões e, sobretudo, organiza reconstruções a partir de elementos dispersos em sonhos, textos ficcionais, ensaios ou autobiografias, bem como em relatos de familiares e amigos. Psicanalistas e arqueólogos recolhem fragmentos, detalhes, restos, elementos inicialmente desprovidos de importância, que, após engenhoso e criativo esforço de interpretação, permitem a composição de perfis psicológicos e teorias sobre o funcionamento da psique. 

A análise de Hitler não é diferente — e o resultado é fascinante e profundo. O estudo permanece vigoroso e importante depois de tantos anos. E vai além: nos faz perguntar quantos Hitlers vivem ao nosso lado, à espera de circunstâncias históricas para emergir e espalhar o caos.   

Quem escreveu esse texto

Luciana Saddi

Psicanalista, mestre em psicologia, escreveu Educação para a morte (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.