Literatura,

Distopias e contos de fadas

Narrativas curtas de Veronica Stigger desafiam convenções literárias explorando suspenses e expectativas do leitor

31maio2019

Sombrio, Ermo e Turvo, termos que dão título ao novo livro de contos de Veronica Stigger, são diminutos municípios localizados na região sul catarinense, quase na divisa com o Rio Grande do Sul — terra natal da autora, como ela faz questão de dizer aqui e ali, seja por meio de confissões absurdas, seja com regionalismos como “guri” e “trifeliz”.  

Dos três, Ermo é o que melhor faz jus ao nome, já que em 2010 contava, segundo dados do ibge, apenas 2050 habitantes — ainda que nas eleições de 2018 houvesse mais de 5 mil ermenses aptos a votar. Seja como for, Sombrio e Turvo limitam com Ermo. Todas as histórias do livro — distopias, apocalipses, pesadelos e contos de fadas — poderiam se passar na região. 

Mas não se passam. A referência, por algum motivo misterioso, aparece no título e só. Os 24 textos do livro em geral se parecem com contos — mas que Sombrio Ermo turvo não deveria ser chamado de livro de contos, tantas são as subversões em relação ao gênero. A palavra “sombrio” é mencionada no conto “O fado” — escrito, aliás, na forma de poema. Mas naturalmente não se trata de um poema, e sim de um bilhete para o Franklin, provável amigo da autora: 

querido franklin
fomos hoje a évora
e tão logo chegamos
corremos à catedral
para saudar os corvos
em teu nome
mas não havia corvos. 

A certa altura, a poeta faz referência a um templo “sombrio”, aonde ela teria ido, em vão, procurar corvos.

Além de contos e poemas, quase sempre no estilo curto e grosso que caracteriza a escrita de Stigger, há também relatos de sonhos (mais para pesadelos), esboços para peças teatrais, contos de fadas, piadas de mau gosto, relatos pornográficos, novela das sete, histórias de suspense & terror, uma prece feita por um Leão, textos de classificação indefinida (ensaios? anotações?) e uma curiosa palestra, no conto “O livro”, em que uma especialista trata de Rancho, livro inédito de Veronica Stigger.

A palestrante diz que Stigger está desaparecida há quatro anos, o que é mentira, e que ela, a palestrante, teria recebido o tal inédito da própria autora pelo correio. Por sua vez, Rancho consistiria em uma novela na qual Verônica (com acento) percorre o mundo fazendo apresentações de um poema longo, “O coração dos homens”, escrito por Veronica Stigger, que trataria de um episódio de infância marcante e traumático na vida de Veronica (sem acento) — ou seja, um claro deboche do gênero autoficção. (Em tempo: o poema existe e foi publicado no livro anterior da autora, Sul.) 

Quanto ao episódio traumático, que remonta a uma encenação escolar de A Branca de Neve e os sete anões, na qual Veronica, no papel de espelho, acabou menstruando em cena, ele vem sendo repetido de diferentes formas na literatura da autora: o poema foi de fato lido em diversas apresentações, depois publicado em livro e agora seria o tema principal da novela Rancho, que não existe, mas é analisada por uma especialista em sua obra, que também, claro, não existe. 

A dinâmica de repetir o mesmo episódio traumático, que o crítico Hal Foster discute no ensaio O retorno do real e chega a definir como uma espécie de “realismo traumático”, é uma das chaves de leitura de Sombrio Ermo Turvo. Outras figuras sempre retornam na obra da autora: anões, cenas sanguinárias, certa fascinação por espetáculos. E a própria especialista na obra de Stigger dá essa chave quando propõe: “A personagem de Rancho passa então a ler esse poema pelo mundo como se, para superar o trauma, fosse preciso reencená-lo, ritualisticamente, a cada apresentação”. 

Corte abrupto

Reviver e repetir um trauma se contrapõe a uma segunda dinâmica, que é oposta sem deixar de conviver com a primeira: a de omitir o evento traumático. Isso, por sinal, a especialista não diz. O sangue ora jorra (a garota que menstrua no palco), ora é retido. É por isso que muitas das histórias de Stigger começam de repente e terminam — em um corte abrupto — sem nenhuma solução aceitável. Essas histórias parecem, muitas das vezes, explicitar o que menos importa e, por outro lado, omitir o que parece ser mais fundamental. Como se criasse um rodeio em torno do trauma, que por sua vez é encoberto. Trata-se de uma dinâmica que inclusive explica o forte traço de terror e suspense deste livro, sugerido aliás desde o título. Talvez seja esta a principal novidade de Sombrio Ermo Turvo em relação aos trabalhos anteriores de Stigger: a exploração narrativa do suspense.

No conto “O anão”, por exemplo, que narra o misterioso encontro entre um anão e uma mulher alta, a relação e o diálogo são construídos em torno de um episódio que não se menciona. Ao se encontrarem em um “restaurante vazio e irreal como em um cenário de cinema”, o anão pergunta, “sem rodeios”: “Trouxe o bebê?”, e a mulher responde que não, “num rompante, com voz assustada”. Ao que parece, o anão salvou a mulher em algum momento, quando ela “seria empalada, assada e, depois, cortada em pedacinhos” — disso o leitor fica sabendo — e agora o anão quer um bebê como recompensa. 

Mas nem tudo é o que parece ser na literatura de Stigger, que se definiria então não só pelo suspense, mas também pela emissão de falsos sinais. No desfecho, feito um conto de fadas ou uma novela de tv, os dois resolvem fugir juntos e acabam sendo, “na medida do possível, felizes para sempre”. Ou seja, trata-se de um final que parece resolver a trama, mas não resolve. Antes, reabre a falsa felicidade com um novo suspense, uma nova fantasia, sob a forma de ironia, piada ou maldade: “na medida do possível”. 

E a solução para tanto disparate se apresenta como uma chave de ouro, em “O fim”. Anos após o fim do mundo, depois de um recuo inesperado do mar, estaria inscrito no que sobrou de uma grande chapa de aço “três funestos adjetivos grafados em branco sobre um fundo que um dia fora verde, como se estes fizessem as vezes de três aves de mau agouro que, no passado, grasnavam a horas mortas a anunciar a ouvidos sempre moucos o tempo por vir, ou as vezes de três notas musicais, rápida e incisiva, a mesma nota repetida três vezes”. Como se dissesse que a única forma de realismo na arte contemporânea consiste na ficção científica, ou nas histórias de terror. Chave de ouro, como disse, mas que só abre uma única porta, a do inferno.  

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).