Literatura,

Calendário das marés

Histórias independentes compõem primeiro livro solo de escritor paulista

28nov2018

A cidade de Sebastopol se equilibra na ponta de uma península, abraçada pela Ucrânia, Rússia e Crimeia. Tem pouco mais de 300 mil habitantes e já foi foco de disputa entre soviéticos e alemães nos anos 1940. Agora, Sebastopol dá nome à terceira publicação de Emilio Fraia, que pela primeira vez assina um livro sozinho. 

São três partes, com histórias aparentemente independentes e nomeadas com meses do ano. Lena, uma alpinista que sofre um acidente na descida de sua escalada ao Everest, em meados de 2012, é quem abre Sebastopol com “Dezembro”, narrando em primeira pessoa sua relação com o videomaker italiano Gino.

Por ter superado a amputação das pernas depois de quinze cirurgias e um longo período sem conseguir se olhar no espelho, a atleta se transforma em uma palestrante de sucesso, o que ajuda, de certo modo, a aplacar seu isolamento social. Lena é uma mulher solitária, com poucos amigos, e sua mãe tem câncer terminal. 

Os contos seguem sem grandes sobressaltos, cultivando uma atmosfera ansiosa

Essa existência segregada parece ser o principal motivo que a leva a se entregar, junto com suas valiosas memórias, aos cuidados de Gino, que pode usá-las como bem entender. “Fiz o que as pessoas fazem o tempo todo. Contar as histórias, recontá-las, congelá-las, dar sentido a elas”, confessa a si mesma. 

Chega “Maio”, e com ele Nilo, dono de uma pousada agora desativada. A exemplo de outros desavisados, o peruano Adán e sua mulher vão parar na propriedade e, depois do pernoite improvisado, ela parte e ele permanece, estabelecendo uma relação com o proprietário. Enquanto mal se sabe a história de um — anos antes Nilo escondera todas as fotografias em uma caixa no porão, numa tentativa de esquecer o passado —, do outro se descobrem nós primitivos que envolvem exílios, sacrifícios e mortes.

Quando Nilo desaparece, Adán ganha acesso às profundezas do amigo — 
mas aí já é tarde demais. Enquanto esvazia a água da piscina, logo na abertura do conto, o empregado Walter “sacode a cabeça e diz que aquilo não faz o menor sentido”.  

“Agosto” é o conto e o mês de Klaus, um diretor de teatro que convida a jovem Nadia para criar uma peça que fala da vida de um famoso pintor russo, morador de uma cidade vizinha a Sebastopol, e que gostava de retratar soldados. A certa altura, enquanto planejam o roteiro do espetáculo, Nadia o questiona sobre a decisão de escrever sobre aquela figura. 

“Você gosta das pinturas desse cara […], mas é apenas uma história esquisita em que não acontece nada”, argumenta, enquanto Klaus responde que, no fundo, todas as histórias são esquisitas e também nada acontece nelas. E essa reflexão, sobre o tênue limiar entre a banalidade e o relevante, permeia Sebastopol da primeira à última página, colocando o leitor na posição de advogado da importância dos relatos dos outros e da própria biografia. 

Paralelismos

Embora até apresentem reviravoltas, os contos de Fraia seguem sem grandes sobressaltos, cultivando uma atmosfera ansiosa, que serve perfeitamente ao objetivo de envolver — sem que para isso sejam necessários quaisquer artifícios exceto o pleno domínio da linguagem, do manejo dos deslocamentos no tempo, bem como de uma cuidadosa narrativa descritiva. 

Ao relatar sua vida pregressa, Adán traça um paralelo entre o papel das ondas como o elemento que serve para sacodir o mar, e as tragédias, que vêm para sacodir a vida. Hábil como seu criador, o personagem sabe conduzir mais de uma trama ao mesmo tempo e, como talvez Fraia imagine, Adán pensa que “as histórias correm paralelas, sem nunca se encontrar”.  

Contudo, ao menos em Sebastopol, as vidas se resvalam, sim, ainda que de modo sutil e quase misterioso. A intersecção pode estar na renúncia do self à qual todos os protagonistas se submetem, ou nas escaladas de Lena, que, segundo Nilo, são a tentativa humana de estar mais perto dos deuses — algo parecido com o que fazem o teatro e a pintura quando ousam retratar a guerra. Esteja onde estiver o cruzamento, sorte do leitor que se dispuser a galgar o universo de Fraia e tirar sua própria conclusão. 

Quem escreveu esse texto

Marcella Franco

É jornalista e escritora.