Literatura israelense,

Sobre filmar, criar e esquecer

David Grossman une literatura e cinema em novo romance

01abr2022

“Não esquecer cada detalhe, porque é assim que se constroem mitologias”, diz Rafi, personagem de A vida brinca muito comigo, do israelense David Grossman. Mitologia, aqui, passa pela consagração de trajetórias individuais em mitos, por meio do ato de lembrar e evocar heranças, semelhanças, que se confundem com seu registro: o romance é também a descrição de uma filmagem e daquilo que a câmera capta, como se a tecnologia pudesse salvar do esquecimento, resguardando o mitológico. Como o romance mostra, isso não é necessariamente verdadeiro, tampouco essencial.

Quem narra e filma é Guili, filha de Rafi — de quem inclusive herdou interesse pelo cinema — e Nina. Guili é a terceira geração de uma família de mulheres paradoxalmente entrelaçadas pelo abandono enquanto eixo da mitologia familiar: Vera, a matriarca, uma iugoslava que emigrou para Israel e foi viver em um kibutz, estabeleceu uma relação tensa com sua filha Nina, principalmente por causa do período em que a deixou enquanto esteve presa em Goli Otok, local de “reeducação” para acusados de trair Tito. Esse episódio da biografia de Vera guarda um segredo determinante para a relação entre mãe e filha.

Grossman cria uma narrativa calcada em fatos históricos com contornos míticos

Nina, por sua vez, abandonou Guili ainda bebê, deixando-a aos cuidados do pai e para sempre afastada da mãe. Rafi e Nina, além de ex-casal, são meios-irmãos, pois Vera, no kibutz, já viúva, casa-se com Tuvia, pai de Rafi. Guili, agora crescida, lida com dúvidas acerca de seu desejo de ser mãe, considerando inclusive a carga hereditária na trajetória de filhas largadas. O desenrolar desse questionamento chega a ser clichê, em contraponto a um romance original em tantos aspectos.

A vida brinca muito comigo passa pelo casamento de Tuvia e Vera, chegando às comemorações de noventa anos dela. A presença de Nina na festa, uma figura distante, vivendo no Ártico, conduz o romance para sua terceira parte: a viagem que Vera, Nina, Rafi e Guili fazem para a Croácia, percorrendo os locais em que Vera viveu com seu primeiro marido e pai de Nina, Miloš. É aí que ganha corpo o jogo entre filmar e narrar, lembrar e esquecer.

A visita aos locais por onde Vera passou na infância convoca suas memórias, com destaque para o longo período em que foi torturada em Goli Otok, obrigada a ficar estática à beira de um abismo. Esse tipo de construção imagética e calcada na corporeidade de um personagem em uma situação surreal fornece contornos míticos a uma narrativa calcada em fatos históricos. Leitores familiarizados com Grossman reconhecerão elementos de obras anteriores, como Ver: amor e Fora do tempo, embora em A vida brinca muito comigo o experimentalismo formal permaneça em segundo plano.

Invenção

Em consonância com essas obras, a história de Vera também parte de uma biografia real a que se incorporaram elementos inventados, de maneira análoga ao que Grossman fez em Ver: amor, ao reconstruir o fim da vida do escritor polonês Bruno Schulz, e em Fora do tempo e A mulher foge, com o próprio luto. Dessa forma, se a criação de mitologias passa por não esquecer, há no programa literário do autor uma alternativa ao esquecimento que inclui o ficcional, reforçando que mesmo um equipamento preciso como uma câmera produz ficção.

Grossman estabelece contato entre literatura e cinema com um texto que se debruça sobre a reconstituição de memórias em filme. A partir de Vera, que viaja para lembrar e narrar, constata-se que há algo no ato de filmar que escapa ao registro em si, mas não à invenção. Já Nina, ao revelar que está doente, com “amnésia, demência, Alzheimer, algo do tipo”, deseja contar sua história para uma Nina futura, ou seja, inventada — e a Guili e Rafi, que aceitam aquilo como um projeto pessoal. É dessa amálgama de intenções que transparece a mitologia, como a cola invisível que une esses personagens — e cobra deles respostas e ações.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Thais Lancman

Escritora e crítica literária, publicou Pessoas promíscuas de águas e pedras (Patuá).