Literatura infantojuvenil,

Você tem fome de quê?

Em dois livros, Renato Moriconi traz uma nuvem de tristeza, em parceria com Yuri de Francco, e uma planta que quer engolir o mundo

01ago2021

A planta verde, verdíssima, com tantos galhos que mais parecem braços, bocarra aberta, dentes vermelhos e afiados, pronta para nos devorar: fome, faminta! O menino, cujo rosto está encoberto por uma nuvem carregada, a camiseta manchada pelos pingos que caem em seu peito: chuva, melancolia… Imagens tão diversas quanto essas nos apresentam livros que, embora aparentemente diferentes, estão longe de ser opostos. A primeira evidência de semelhança entre as obras é o nome do artista plástico Renato Moriconi, que assina texto e imagens de Uma planta muito faminta e é parceiro de Yuri de Francco em O menino que virou chuva. Há que se notar que as tipologias dos títulos, desenhadas por Renato, têm traços comuns. Trazem, melhor dizendo, vibração própria — algo que se movimenta dentro de cada letra e faz as palavras pularem, vivas, quase humanas.

As ilustrações de ambos os livros, assim como as tipologias, incitam a curiosidade para descobrir o que acontece dentro das páginas. Vivas e até perigosas quando nos apresentam a protagonista de Uma planta muito faminta, são tanto leves e etéreas quanto densas e absolutamente sólidas em O menino que virou chuva: os sentimentos passam por nós, mas também nos cristalizam. É assim, por meio das imagens, que vão sendo formalizados os sensíveis assuntos que perpassam as obras. Pareados com as palavras, os desenhos dessas obras nos revelam tudo o que não vemos imediatamente. Entre imagens e vocábulos, esses livros, em seus diferentes formatos, nos capturam. Ora mastigados pela planta, ora encharcados pelo profundo pranto que dividimos com o menino, os sentimentos são lentamente percebidos por nós. Constrói-se o mais forte elo entre as obras: nos fazer parar, nos convidar a mergulhar no tempo presente das sensações e da leitura.

Lá de fora, a protagonista de Uma planta muito faminta não sabe quase nada. Lá de fora, também nós, leitores, nos esquecemos ao abrir as páginas do livro e conhecer essa “linda plantinha que se revelou naquele dia ensolarado”. Adentramos as enormes páginas brancas e observamos crescerem a planta e sua fome. Herdeira da solidão de Flicts e da fome da lagarta de Eric Carle, nossa planta não boia no espaço tentando entender a si mesma, nem tem fome de mundo para transformar-se. Come por comer; devora porque não tem mais nada para fazer; engole porque o outro, a não ser dentro dela, não existe.
 

Mas há o outro — sempre há, seja ele a imensidão do espaço, seja ela a borboleta em que o tempo nos molda. A repentina chegada do mundo transforma a vida da planta e também o nosso olhar enquanto leitores: para nos conhecermos, é preciso enxergar em todas as direções.

Solidão

Mas e quando estamos sozinhos e a imensidão pesa sobre nós? O tudo é um infinito deserto branco e azul. No meio dele, o menino e sua nuvem. Garoto sem rosto, corpo parado dentro do sentimento: se a planta faminta engole o mundo, em O menino que virou chuva a melancolia é maior que tudo. Simbolizada pela nuvem, que chega sorrateira e se transforma no rosto do personagem, a tristeza faz chover. Por que choramos? É preciso saber sempre? Ou é possível aconchegar-se na nuvem triste, dar espaço ao vazio do desalento, enxergar-se no tempo aberto da lágrima?

“A terra o sol o vento o mar/ São a minha biografia e são o meu rosto”, dizem os versos de Sophia de Mello Breyner Andresen. Como mudam as marés, tudo o que é precipitação corre, se transforma. E se o choro, a chuva forte, a tempestade, o furacão se formam nas letras e nos desenhos emaranhados, também vão embora no seu tempo. É o que nos ensina o menino de Yuri de Francco, de Renato Moriconi e também nosso — pois a solidão, quando não engole, se abre para o encontro. Que, assim como o que vive a planta faminta, modifica.

Se a planta faminta engole o mundo, em ‘O menino que virou chuva’ a melancolia é maior que tudo, simbolizada pela nuvem

Em O menino que virou chuva, bem como em Uma planta muito faminta, a presença do leitor é essencial. Lendo devagar ou movimentando o livro com velocidade, o olhar é tanto para as narrativas como para as sensações que elas despertam em nós.

Nesses contos acumulativos de engolir o mundo e abraçar a tristeza, planta e menino falam da nossa condição humana, devorados pelos sentimentos do agora, mergulhados em nossas fomes, ansiedades, melancolias. Maiores que o mundo, menores do que a tristeza, planta e menino nos lembram, com delicadeza, que assim somos. E que se, como diz Michèle Petit, “a literatura é onde dói”, também é possibilidade transformadora de encontros em movimento.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Malu Rangel

Doutora em teoria literária, é editora de livros infantis.