Literatura infantojuvenil,

Medo a meia-luz

Segundo livro de Emicida para crianças abre portas para iluminar temores de pais e filhos

29set2020

O tema clássico do medo ganhou novas tintas, muito mais vivas e concretas, desde que a pandemia fez das crianças um dos grupos sociais mais atingidos pelas consequências do fechamento de escolas e espaços públicos. O medo sempre foi um poderoso motor narrativo, mas agora atinge igualmente pais e crianças: deixa de ser metáfora, “tema” distante de contos de fantasia ou culto consumista para neovampiros e zumbis. 

Agora, como nas guerras e tragédias humanitárias, o medo é pra valer. O medo apareceu para todos, se espalhou por todos os cantos, assustador, sombrio e real. Não vem mais como experiência estética em um mundo aparentemente mais seguro, mas como emoção palpável.

E foi assim que a escuridão e eu ficamos amigas parece ser uma das primeiras respostas culturais para crianças a este distópico 2020, oportuno para ajudar em sua difícil digestão. O segundo trabalho infantojuvenil de Emicida foi concebido durante o período de isolamento social e traz a atmosfera abafada de quem viu uma criança perder meses, um ano?, da infância trancada dentro de casa. “A aflição na escuridão era tão dura/ Que calava toda minha sede de aventura.”

Em entrevista, Emicida conta que a questão do medo do escuro vem de longa data em sua imaginação de escritor. O nascimento da segunda filha e a companhia de Teresa, a mais velha, hoje com dez anos, trouxeram para as preocupações do pai a batalha que toda criança enfrenta para vencer o medo do escuro. “Teresa foi minha companheira nas madrugadas, entre idas e vindas, cortando a noite…”, conta ele. “E eu adoro ver o sol nascer, eu já assistia ao sol nascer quando eu fazia música, e aí a Teresa virou minha companhia nisso, porque ela acordava às três horas da manhã, eu ficava chacoalhando ela, rodando pela casa… Comecei a fazer essa reflexão sobre a escuridão, passear pela escuridão, porque as crianças ficam desesperadas quando está escuro.” 

Luz e sombra determinam o contraste entre as duas pequenas heroínas: a narradora, que pedia ao pai antes de dormir que deixasse uma luzinha acesa, e seu duplo noturno, uma vampirinha com medo da “claridão”. Complementares e opostas, as duas meninas mostram ao leitor que ninguém escapa do medo — nem quem pede para acender a luz nem quem quer apagá-la. 

A coragem terá sido o legado deste ano de horror, parece afirmar Emicida. A coragem e as histórias que contamos

O medo sintomaticamente não surge na forma de monstro ou perigo inumano, mas de um adulto que fala “É importante ter cuidado”. Ou “todos os cuidados”, como diz o mantra, a palavra de ordem mágica de 2020, que redefine todos os relacionamentos e padrões de comportamento.

O medo é realmente um cara intrometido,
Entra sem ser chamado
E chega convencido.
Sussurra em nossos ouvidos
Mil histórias com monstros e bandidos
Às vezes, pega até os adultos 
[desprevenidos. 

Emicida lembra ainda de uma técnica utilizada pela escritora Elisa Lucinda para afugentar o medo de seu filho pequeno: “Tem uma história do Juliano, filho dela, que era pequeno. Agora ele já é maior do que eu, Juliano é gigante. Tem uma passagem de um texto dela, a respeito da infância do Juliano, em que ela diz que o Juliano não tinha medo do escuro porque a mãe dele era escura e, quando ela apagava a luz, tudo era escuro, então tudo era mãe. Sabe, mano? Então, esse texto é tão incrível que ele me fez, durante muitos anos, ficar refletindo sobre como pacificar essa relação com o desconhecido. Como se debruçar em cima do medo e pensar: cara, acho que se a gente for até o medo a gente vai ter uma conclusão diferente de quem ele é, sabe?”.

Naturalização

Uma outra situação, vivida em Buenos Aires, trouxe para a consciência de Emicida a naturalização do medo que vivemos no Brasil. “Eu me lembro de uma vez, quando a gente foi fazer uma turnê na Argentina, a gente conheceu umas meninas que moravam lá. As meninas, quando a gente estava indo para o hotel, elas pegaram uma rua escura… A gente perguntou para elas, acho que eu perguntei, falei assim: ‘Pô, mas vocês vão por essa rua aí, mano? Escurona essa rua’. A mina virou para mim e falou assim: ‘Mano, a gente não está no Brasil’. Aí eu fiquei pensando em como a gente naturalizou o medo de tal maneira que a gente não passa em alguns lugares. A gente não sai em alguns horários. A gente vive uma experiência constante de encarceramento. Porque a gente domesticou nosso medo de maneira que a gente olha para 120 mil corpos [mortos pela pandemia] e fala assim: ‘Porra, mas a economia não pode parar, né, mano? Vou para a praia’.”

A história foi para o papel durante as férias em família, no Vietnã. “Eu fiquei olhando aquilo de madrugada e pensando nessa situação da escuridão. Olhando elas dormindo em paz, em paz com a escuridão, em paz com o mundo, aquele sono de criança… Aí eu peguei uma caneta e um papel e comecei a escrever.” 

Nas ilustrações de Aldo Fabrini, as duas meninas são como “meninas superpoderosas” à brasileira; já o medo é antiquado, feioso, antipático. Mas não é monstruoso.

O desenlace vem na forma de uma super-heroína de pele escura, cabelos cacheados e punho erguido em sinal de resistência. Ela “nos convence de prima”: “O outro é como nós”. Outra lição que parece vir da experiência da pandemia.

O livro não fala em nenhum momento de pandemia, coronavírus, quarentena ou isolamento social. Mas nem precisava: a experiência parece impregnar todas as páginas. Que marcas ficarão de tudo isso em nossos filhos, nesta geração marcada pela pandemia? A coragem terá sido o legado deste ano de horror, parece afirmar Emicida. A coragem e as histórias que contamos. Quantos contos de fada não terão nascido na vertigem de pestes e epidemias?

Como na canção da Legião Urbana, a narradora começa o livro pedindo ao pai que deixe uma luzinha acesa. Seu duplo vampirino teme se ofuscar pelo excesso de “claridão”. Com este livrinho sem moral da história nem promessa de felicidade para sempre, Emicida expõe os nossos medos a meia-luz, na gradação certa para que sejam encarados de olhos bem abertos, por qualquer um de nós. 

Nota do editor
Ouça a entrevista com Emicida no podcast 451 MHz, no site da revista dos livros ou em seu player preferido.
 
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.