Literatura em língua francesa,

Zonas intermediárias

Autor marroquino narra história de prostituta migrante que vive entre o Marrocos das suas memórias e a França do seu cotidiano

01jul2021 | Edição #47

Abdellah Taïa é um cronista do interstício. Esse marroquino de 47 anos escreve sobre o que existe no espaço entre as coisas. Por exemplo, no espaço entre a terra natal e o exílio e entre o masculino e o feminino — dois dos temas de Um país para morrer. Publicado em francês em 2015, o romance sai agora em português pela editora Nós.

O livro gira em torno de Zahira. Nascida em Salé, uma cidade marroquina próxima à capital, Rabat, ela mora em Paris. Vive entre o Marrocos e a França. Suas memórias estão fincadas na terra de seus pais, no bairro onde cresceu, no gosto da comida típica do Ramadã. Seu corpo, no entanto, está no bairro francês povoado por outros migrantes, no apartamento onde trabalha como prostituta.

Taïa descreve esse estar-entre-as-coisas com sutileza. Esse é um dos traços fundamentais do conjunto de sua obra. Os protagonistas de dois de seus principais romances — L’Armée du Salut (O Exército de Salvação) e Une Mélancolie arabe (Uma melancolia árabe) — habitam esses espaços intermediários. Eles nasceram no Marrocos e migraram para a França. Taïa fez esse mesmo trajeto e o conhece bem, algo salpicado em seus livros com temperos de autobiografia.

Ele nasceu em Salé em 1973. Um jovem homossexual em entornos conservadores, foi assediado e violentado. Sobreviveu à pobreza extrema e ao descaso da família, dores que narrou em parte de sua obra. Decidiu migrar para a Europa. Foi estudar na Suíça em 1998 e, de lá, mudou-se para a França em 1999. Foi no exílio que assumiu publicamente sua sexualidade, sendo um dos primeiros e únicos autores marroquinos a fazê-lo, razão pela qual recebeu tantas loas e críticas.

Zahira, como os personagens que a antecederam na obra de Taïa e o próprio autor, negocia diariamente a sua presença em Paris. Vive a vida dos migrantes que são quase franceses sem jamais sê-lo de fato. Falam francês, mas com sotaque. Ela se cerca de pessoas que vivem em zonas intermediárias. Consulta um feiticeiro judeu “meio gay” em Paris e outro berbere (grupo étnico norte-africano). Namora um migrante do Sri Lanka e acolhe um refugiado do Irã, que é homossexual. Mesmo os seus clientes são migrantes pobres, desacostumados, deslocados na capital francesa.

A Paris que essas pessoas habitam não é aquela da Champs-Élysées nem a do rio Sena ou a da Torre Eiffel. É a cidade de periferias, de ruas sujas, de gente que pena para pagar o aluguel e comprar a janta. São lugares que apenas os migrantes — como Zahira e seu criador, Taïa — conhecem bem.

Alguns desses personagens falam com lirismo, tocando em feridas expostas. O mais fascinante deles é Aziz, um amigo de Zahira. Quando o leitor o encontra, esse argelino está prestes a passar por uma cirurgia para mudar de sexo. Vai se tornar a mulher Zannouba. No texto, é Aziz/Zannouba que melhor articula a vida entre as coisas. Antes da operação, Aziz está fora de si de felicidade. “Vou cortá-lo”, diz para Zahira, “finalmente deixar este maldito território dos homens.” Vai ser outra pessoa, mais feliz, prevê. Mais adiante, no entanto, Zannouba lamenta que não ficou satisfeita com o processo. Segue no meio. “Eu sou mulher, completamente mulher? Não. Eu sou homem? Não. O que sou então?”

É nesses trechos que Taïa brilha como romancista. A melancolia dos personagens é palpável, assim como a solidão, outro sentimento recorrente no livro. A protagonista, Zahira, está irremediavelmente só. Mesmo com tantos amigos orbitando sua vida, fica faltando alguma coisa.

A Paris do livro é a cidade de periferias, de ruas sujas, lugares que apenas os migrantes conhecem bem 

Talvez seja o vazio deixado pelo suicídio do pai, narrado nas primeiras páginas do livro. Aquela perda ainda a assombra, mesmo no exílio. Como outro personagem lhe diz em determinado ponto do enredo, Zahira segue sendo uma “filha de Salé, até mesmo em Paris”. Não conseguiu deixar a cidade marroquina. O passado pesa como uma âncora e impede, talvez, que seja feliz. Chama a atenção, também, que ela peleje para encontrar um companheiro na França. Zahira está apaixonada por um homem que não a quer. Ao mesmo tempo, não quer o homem que a persegue.

Colonialismo

Taïa também brilha quando costura o colonialismo francês nas histórias que conta. A França colonizou o norte da África — Argélia, Tunísia e Marrocos — nos séculos 19 e 20. Apesar de nunca explícito, esse contexto aparece em algumas das histórias de Um país para morrer, como no caso do personagem que serviu no Exército francês na Indochina, por exemplo, e foi mais tarde descartado pelo colonizador (“A França também me rejeitou… Ela me mandou de volta para o Marrocos e me esqueceu”). Taïa pincela, ainda, a história de uma prostituta marroquina que acompanha os soldados franceses na campanha da Indochina, se apaixona por um deles e foge.

Nesse sentido, Um país para morrer é mais um romance pós-colonial, gênero em que autores árabes tiveram notável sucesso nestas últimas décadas. O melhor exemplo dessa abordagem é Tempo de migrar para o norte, do sudanês Tayeb Salih, publicado pela editora Planeta. Enquanto o romance de Salih transborda raiva, porém, o de Taïa é marcado pela tristeza.

Um dos pontos fracos do texto de Taïa é a sua tentativa de abraçar tantos temas em um romance curto. São tantos enredos, tantos espaços abertos, que a história parece escorrer pelos dedos da mão. O leitor não tem tempo bastante para se apegar aos personagens. Aziz/Zannouba, por exemplo, cativa no início do livro e depois some. A multiplicidade de pontos de vista, caleidoscópica, também desafia a audiência a decifrar quem afinal está falando o quê — uma cacofonia talvez intencional, talvez não.

Outra crítica possível a Um país para morrer é seu didatismo excessivo. Em um trecho, o narrador explica que o iraniano Mojtaba teve de fugir por causa de sua homossexualidade. Em outro, explicita o fato de que o marroquino Allal é discriminado por ser negro. O leitor poderia entender isso sem precisar ser levado pela mão pelo autor. Poderia ler nas entrelinhas — nesse espaço entre o dito e o não dito que Taïa enxerga com tanta nitidez. 

Este texto foi realizado com o apoio da Embaixada da França no Brasil.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.