Literatura brasileira,

Pirâmide de biscoitos

Ambientado entre as redações de jornal e o subúrbio, ‘Asfalto selvagem’ mostra como Nelson Rodrigues fez do folhetim uma arte maior

01mar2021

Não há registro de que Nelson Rodrigues tenha sido um leitor atento de Gustave Flaubert — entre os romancistas do século 19, Eça de Queirós era o seu preferido. Mas Nelson tinha os seus truques e segredos. Numa das passagens mais bem realizadas do folhetim Asfalto selvagem, ele repete a cena da feira agropecuária de Madame Bovary, na qual sexo proibido e comício político são descritos simultaneamente. Copiando a estrutura narrativa de Flaubert, e nela introduzindo o elemento inesperado do humor, Nelson consegue provocar grande impacto no leitor. 

Cá para nós, o brasileiro supera o mestre francês. Transporta a ação para o Bar do Pepino, misto de botequim e motel em São Conrado, onde dois jovens (ele, dezenove anos; ela, catorze) tentam vencer o nervosismo e a atrapalhação e viver a sua primeira tarde de amor. Apesar do tesão, os amantes não conseguem se concentrar, porque ouvem, debaixo da janela, os berros de dois jornalistas que bebem batida de maracujá e discutem a sucessão presidencial de 1960. 

“Não vai haver eleição nenhuma. Não há outra saída: é o golpe!”, diz um deles, ao que o outro responde: “Se tocarem no Jânio, toma nota: é guerra civil!”. O primeiro resume: “A cronologia é morte de Jânio, golpe, guerra civil!”. No quarto, deitada nua na cama, Silene cerra os dentes: “Faz de conta que é uma curra. Que você me pega, que me bate, que…”. Lá fora, a reunião de pauta improvisada chega a uma conclusão: “Mais que petróleo, precisa jorrar sangue, muito sangue”.

Silene (“quadris vibrantes e uma petulância meio perversa”) e seu namorado Leleco são frutos da imaginação de Nelson Rodrigues. Mas os jornalistas preocupados com o destino do Brasil não. São figuras de existência real: Ib Teixeira assinava a coluna “Esse Rio aflito” no jornal Última Hora, e Raimundo Pessoa era redator de O Globo. O folhetim de Nelson é uma espécie de roman à clef de porta arrombada: desfilam na obra amigos íntimos e colegas de trabalho, com seus nomes de batismo, de cartório ou de pluma, que o autor adorava transformar em personagens. É tal a profusão de fatos históricos e gente de carne e osso a entrar e interferir na trama que a editora HarperCollins preparou, na recente reedição de Asfalto selvagem, 93 notas para melhor contextualizar a leitura. Como se fosse um índice onomástico numa obra de ficção.

Chato adorável

O jornalista Wilson Figueiredo — que entrou para o Jornal do Brasil em 1957, no momento em que o velho matutino iniciava sua famosa e histórica reforma gráfica — é descrito no romance como um dos três ou quatro brasileiros que ainda se ruborizavam diante do que acontecia no país. “Tive a felicidade de ser íntimo do Nelson, que costumava me visitar na redação do JB. Chegava sem avisar e logo ia se pendurar no telefone”, lembra Wilson, hoje com 96 anos, a memória tinindo. “Ele tinha, com cada pessoa, uma relação exclusiva. Sempre pensando como criador literário, sabia tirar de você tudo de que precisava. Depois usava a informação para escrever. Um homem charmoso, mas no fundo um chato. Um sujeito que sabia aporrinhar os outros. Chegava para mim e dizia com aquela voz cavernosa: ‘Você está chegando de Minas, não é? Mais um rapaz de Minas de olho no poder, não é?’. Um chato adorável.”

No livro, Figueiredo é retratado como um dos jornalistas mais bem pagos do país: seu apartamento teria “torneiras de ouro”. 
Em seu ritmo de trabalhador das galés, Nelson Rodrigues publicou Asfalto selvagem na Última Hora, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960, em 112 capítulos (quase um por dia!). Para se ter uma ideia da produção do autor na época, ele também escrevia, no mesmo jornal, a série “A vida como ela é…”, além de colunas sobre futebol no Jornal dos Sports e na Manchete Esportiva. Ainda estreou as peças Boca de Ouro (1960) e O beijo no asfalto (1961). Nem o remador de Ben-Hur seria páreo para Nelson. 

Quando entrou no vespertino Última Hora, a convite de Samuel Wainer, já era um dramaturgo conhecido, com cinco peças montadas, mas estava sem emprego e curto de grana. Samuel perguntou se ele topava fazer a página policial. Mas, esclareceu o patrão, queria um material à maneira de Dostoiévski, ou seja, crime (e se possível castigo) com tratamento literário. Em 1951, na primeira edição que foi às bancas, Nelson marcou presença com a reportagem “No cemitério das mulheres vivas”, trazida de um presídio feminino. 

“O Augusto Rodrigues, primo do Nelson, amigo da vida inteira do Samuel Wainer, costumava dizer que este tinha a mania de trocar as pessoas de função. Deu uma página de humor para o Otto Lara Resende. Tirou o Paulo Francis da crítica de teatro e passou para o comentário de política. A série sobre o presídio feminino é uma reportagem mesmo, e ficou sensacional”, conta Karla Monteiro, autora da biografia Samuel Wainer: o homem que estava lá. “Depois o Samuel propôs a ele a coluna ‘Atire a primeira pedra’, de polícia, que saiu durante algum tempo. Foi o embrião de ‘A vida como ela é…’, em que Nelson algumas vezes partia de fatos reais. Mas tinha total liberdade para inventar.”

Fazer folhetins não era novidade para o jornalista. Em 1944, ainda saboreando o sucesso de sua peça Vestido de noiva, ele começou a colaborar no grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Para não confundir a tarefa com seu teatro, criou o pseudônimo Suzana Flag. A publicação de Meu destino é pecar decuplicou a tiragem de O Jornal. Seguiram-se Escravas do amor (no mesmo ano de 1944), Minha vida (1946) e Núpcias de fogo (1948). Suzana Flag reapareceu na Última Hora, em 1951, com O homem proibido. Todos excelentes, usando a fórmula de prender o público com um gancho a cada fim de capítulo, como nas novelas e séries da TV. 

Asfalto selvagem tinha algo mais. Tanto que foi assinado por Nelson Rodrigues, que assim dava a cara a tapa. Sua ficção mostrava a vida como ela é — só que às escondidas: dois suicídios, um assassinato, três defloramentos, uma mutilação sexual, uma curra, consumo de drogas, incesto, adultérios, abusos de autoridade na polícia e no Judiciário, corrupção na imprensa. Em suspense, o Rio inteiro acompanhou, lance a lance, as aflições e os gozos da personagem Engraçadinha. 

Logo que a história começou a ser contada, muitos leitores se reconheceram no que liam e tiveram vontade de esbofetear o autor. Outros não tinham coragem de admitir que, fascinados, iam cedo às bancas de jornal para comprar a Última Hora. Na biografia O anjo pornográfico, Ruy Castro revela uma cena que o próprio Nelson presenciou. Olhando pela janela do ônibus, ele notou um militar fardado, o peito cheio de medalhas, lendo o seu texto, dentro de um carro preto da Presidência da República. Ninguém menos que o marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, futuro candidato da coligação PSD-PTB à sucessão de Juscelino Kubitschek. Lott era considerado pelos seus aliados “um monstro de honradez” — e era justamente a monstruosidade que se esconde nos falsos aparatos da honra que Nelson denunciava.

Com o subtítulo Engraçadinha, seus amores e seus pecados, a obra se divide em duas partes. A primeira se passa em Vitória, por volta de 1940. Em alguns aspectos, lembra as obras de Suzana Flag, com os personagens sufocados por uma moral de ferro — mas apenas na aparência. Engraçadinha catalisa a paixão de todos que a circundam: Zózimo, o noivo banana; Silvio, o primo, de casamento marcado com a lésbica Letícia, que topa um ménage à trois; o tio Nonô e até o padre Fidélis. Este não se contém diante da menina de dezoito anos: “Sentiu no olhar da pequena, no sorriso e até na maneira de sentar-se, de separar os joelhos — sentiu o instinto da prostituta. Tinha uma boca de mulher que sabe beijar, que sabe molhar o beijo. Parecia amoral como uma planta ou um bichinho de avenca”.

Doutor Arnaldo, pai de Engraçadinha, é o personagem mais complexo. Lembra um Getúlio Vargas provinciano: como o ditador do Estado Novo, acaba se matando para livrar a família, que para ele se confunde com a nação, do mar de lama em que a jogara. Debaixo do travesseiro do morto, é encontrado um exemplar de A nossa vida sexual, de Fritz Kahn, manual de educação sexual em grande moda na época. Com o achado, o impoluto homem público se converte, na imaginação do povo, em “um sátiro”.
Antes da débâcle, diziam dele os puxa-sacos que poderia chegar à Presidência, capitalizando sua “reserva moral”. Era o homem público que mais cumprimentava no Espírito Santo. Por extenso Arnaldo Pereira de Almeida, advogado, orador e deputado.

Fisicamente, uma bela figura, de “cabeleira meio heroica”. Sempre foi apaixonado pela cunhada. Intimamente, apoiado na bengala de castão de prata, sonhava com um Führer tropical: “Ah, um Hitler aqui! Encostava esse miserável no muro e tome bala!”.
Naqueles anos de 1959 e 1960, enquanto os leitores se divertiam e se assombravam com as peripécias boladas por Nelson Rodrigues, a literatura brasileira em prosa registrou o aparecimento de livros importantes — e alguns dos quais, com o tempo, atingiriam o status de clássicos: Os cavalinhos de Platipanto, de José J. Veiga; Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso; Espelho partido, de Marques Rebelo; Novelas nada exemplares, de Dalton Trevisan; Laços de família, de Clarice Lispector; O homem nu, de Fernando Sabino; O Valete de Espadas, de Gerardo Melo Mourão. Nada era parecido com o que Nelson fazia na Última Hora. Até porque o gênero folhetim era considerado subliteratura – nem sequer merecia a atenção da crítica especializada.

Subúrbio

Na segunda parte, estamos em 1959, no Rio. A história assume um tom de atualidade. Um prato feito para o estilo de ritmo eletrizante de Nelson Rodrigues, insuperável na escolha dos adjetivos e das metáforas cafonas, a frase polida e polêmica, o diálogo cheio de gírias, embora seco e funcional, instrumento que ele utilizava em seu teatro como ninguém. Na primeira cena, surge uma adolescente, vestida de colegial e mascando chiclete, na esquina da avenida Rio Branco com a rua do Ouvidor. É Silene, filha de Engraçadinha, que se casara, se mudara para um subúrbio carioca, tivera quatro filhos vivendo com Zózimo (que continua a ser um banana, mas agora um banana alcoólatra e flamenguista doente) e se tornara uma evangélica fanática. 

Nessa etapa, o filme Les Amants, de Louis Malle, em cartaz no Cine Pathé, na Cinelândia, funciona como Leitmotiv, assunto de discussão interminável entre os personagens. Todos falam dele, o condenam, mas não resistem a vê-lo — mais ou menos o que ocorria com as peças de Nelson Rodrigues — para conferir “aquela cena”, na qual Jeanne Moreau e Jean-Marc Bory simulam um minete. O Pathé, hoje, é uma igreja evangélica.

Um homem fica siderado pela visão de Silene. Imagina ter entrado num túnel do tempo e voltado vinte anos, ao enterro do doutor Arnaldo, quando discursou em cima do caixão, de olho em Engraçadinha, morrendo de vontade de mandar às favas a retórica fúnebre e dizer em voz alta: “Meus senhores e minhas senhoras! Não é nada disso! O que interessa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por esses dois seios pequeninos!”. Na época, Quintela era um obscuro promotor público de Vale das Almas e invejava o poder, o dinheiro e, sobretudo, a filha do defunto, que revia esculpida em Silene.

Uma multidão de personagens reais fazia figuração em ‘Asfalto selvagem’. Quem ficou de fora lamentou para o resto da vida

Agora juiz de direito no Rio, com o objetivo de se tornar desembargador e quem sabe entrar para a política, o dr. Quintela resolve conquistar Engraçadinha. Sua arma de sedução é a carteira do Judiciário, da qual se vale para furar a fila e assistir Les Amants. Na hora de pagar a interminável corrida de táxi do Centro até o subúrbio de Vaz Lobo, onde mora sua paixão, ele estrila com o motorista: “O senhor está falando com uma autoridade! Sabe ler? Então, lê! Lê, rapaz! Juiz, compreendeu? Podia lhe prender! E nem mais uma palavra!”. Resolve comprar uma geladeira de presente para ela e usa os mesmos argumentos para conseguir um desconto. Ainda promete um emprego para o filho dela: “Não me agradeça, Engraçadinha! Para que serve o Judiciário?”. Ao fim do livro, o narrador  dá ares de grande revelação aos dois segredos que envergonhavam o juiz — e talvez explicassem a sua personalidade: era filho de mãe solteira e, mais grave, nascido em Mimoso (ES).

“O que permite os Quintelas ainda hoje é a existência de certo Judiciário, não democrático, autoritário, altamente corporativista, blindado de controles externos, leniente com abusos de poder e sem nenhuma transparência. Uma corporação que sempre se manteve intocada e encastelada desde os tempos do Império”, analisa Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional. “Pode-se afirmar isso com segurança, mas com o devido cuidado para não fazer generalizações nem dizer que a criação de Nelson Rodrigues seria um caso isolado.” 

Além de Engraçadinha, Quintela tem outra fixação: Otto Lara Resende. O qual funciona como uma espécie de consciência do personagem: o que o Otto iria pensar disto ou dizer daquilo? Adota como suas as tiradas do escritor mineiro: “Não tenho uma opinião no bolso e outra na lapela!”. E chega a visitá-lo em casa sem ter a delicadeza de avisar antes, lamentando que um taquígrafo não andasse atrás dele, 24 horas por dia, para anotar as frases perfeitas da conversa. Não entende como aquele gênio verbal não produzia obras-primas como A comédia humana, de Balzac, ou A vidas dos doze césares, de Suetônio. No auge do paroxismo, compara Otto a um cano furado: “Nem a água chega à torneira, nem o espírito à página impressa e perdurável”. 

Como se sabe, Otto era uma mania fixa do próprio Nelson Rodrigues, que muitas vezes inventava ele mesmo as frases geniais que atribuía ao jornalista. Na época da publicação do folhetim, eles eram colegas de redação na Última Hora. Otto pediu a amigos (Carlos Drummond de Andrade e Hélio Pelegrino, entre outros) que interferissem junto a Nelson para que ele acabasse com aquelas brincadeiras. Nada feito. Dali a três anos, estrearia no teatro Maison de France a peça Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, que gira em torno de uma frase atribuída a ele: “O mineiro só é solidário no câncer”. 

“O Otto não gostava nada daquela obsessão. Mas não reclamava de maneira acintosa, tampouco levava a público seu descontentamento, pois sabia que seria pior. Aí é que o Nelson encarnava na pessoa. Ele inventava tudo, mas fazia de tal forma que parecia verdade. Esse era o segredo do Nelson, que criou um gênero só dele para fazer teatro, romance ou jornalismo”, afirma Wilson Figueiredo.

Otto Lara, ao menos, não estava sozinho. Uma multidão de personagens reais fazia figuração em Asfalto selvagem: de políticos (Jackson de Figueiredo, Delfim Moreira, Paulo de Frontin, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juraci Magalhães, Benedito Valadares, Lourival Fontes, Israel Pinheiro) a artistas do cinema e da televisão (Tom Mix, John Barrymore, Hedy Lamarr, Paul Robeson, Jeanne Moreau, Nádia Maria, Ronald Golias, Chico Anysio, Jorge Loredo), passando por jornalistas, escritores, poetas e intelectuais (Augusto Frederico Schmidt, Alceu Amoroso Lima, Justino Martins, Carlos Lemos, Paulo Mendes Campos, Gustavo Corção, Eduardo Portela, Pedro Calmon, Ledo Ivo, Mário Morel, Heron Domingues, Gilberto Amado, Sobral Pinto, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos). Quem ficou de fora lamentou para o resto da vida. 

“O seu costume de usar arbitrariamente nomes de colegas era visto como uma brincadeira. Todos riam muito. Ninguém poderia levar Nelson Rodrigues a sério. Tudo nele era fantasia”, conta Pinheiro Júnior, que se sentava numa mesa ao lado de Nelson na UH. “O que ele fazia era uma sátira ao dia a dia da reportagem.” 

Além de Wilson Figueiredo e Otto Lara Resende, outros jornalistas atuam como coadjuvantes na trama. José Carlos (Carlinhos) Oliveira faz ponto num bar do largo do Machado, logo ele que sempre preferiu os ares mais sofisticados e transgressores de Ipanema ou do Leblon. O nome do cronista do JB, no entanto, aparece grafado como “de Oliveira” — o que Carlinhos detestava. Implicância com aquele que era “um dos valores mais pujantes das Novas Gerações”? 

Futuro historiador e pesquisador da música brasileira, José Ramos Tinhorão integrava o copidesque do Jornal do Brasil, quer dizer, era um “idiota da objetividade” na visão de Nelson, que usa o romance para repisar suas críticas ao jornalismo contemporâneo. Tendo começado na profissão aos treze anos no jornal A Manhã — criado por seu pai, Mário Rodrigues —, ele não suportava uma manchete sem ponto de exclamação. Tinhorão é pintado como um libertino, que mantinha uma “caderneta sexual” em que anotava o nome de suas conquistas, prometendo capas de O Cruzeiro ou Manchete. Silene, a filha de Engraçadinha, por pouco não entra na lista. 

Amado Ribeiro — umas das lendas da reportagem policial no Brasil — interfere diretamente na história. Leleco, o namorado de Silene, envolve-se num crime sexual, e Ribeiro faz de tudo para explorar a notícia da maneira mais sensacionalista possível, inventando fatos e testemunhas, achacando suspeitos, chantageando a vítima e a própria polícia. Reza a lenda que o repórter, exposto como um cafajeste, ainda se gabava: “Eu sou pior! Muito pior!”. 

Para cúmulo, Amado Ribeiro trabalhava na Última Hora. “Não se sabe de interferência do Samuel Wainer no folhetim do Nelson Rodrigues. Acredito que não. Segundo os relatos, Samuel nunca interferia no trabalho dos repórteres e colunistas. Dava plena liberdade. No máximo, palpitava”, diz a biógrafa Karla Monteiro. Na peça O beijo no asfalto, encenada em 1961, Nelson voltou a retratar a figura do repórter sensacionalista, de novo na pele de Amado Ribeiro, que teria visto um atropelamento em que o acidentado, antes de morrer, pede um beijo ao homem que o socorre. Nas páginas da UH, arma-se o escândalo. A enorme repercussão da peça levou Nelson Rodrigues a pedir demissão do jornal, onde ficara durante dez anos. 

“Nelson Rodrigues usava nomes reais como uma forma estranha de recompensar suas fontes. É sabido que O beijo no asfalto se deve a um acontecimento testemunhado e relatado pelo Amado Ribeiro, condenado à notoriedade como personagem, personagem delirantemente mau-caráter. Em Asfalto selvagem, Nelson não só usou enredos que lhe foram passados por companheiros de redação como acabou adotando seus nomes para autenticar o realismo dos fatos. É claro que alguns gostavam de sair do anonimato”, acredita Pinheiro Júnior.

Nas palavras do romancista Alberto Mussa, ‘há quem pense que o gênio de Nelson Rodrigues seja maior que o de Guimarães Rosa. É a minha opinião’

Em dois volumes, Asfalto selvagem ganhou lombada pela editora J. Ozon em 1961. E três adaptações para o cinema: em 1963, J.B. Tanko levou para as telas a primeira parte e, em 1965, a segunda. Em 1981, foi a vez de Haroldo Marinho Barbosa fazer sua versão, com Lucélia Santos no papel de Engraçadinha. Em 1995, a história virou minissérie na TV Globo, com interpretações marcantes de Cláudio Corrêa e Castro, Alessandra Negrini, Cláudia Raia e Paulo Betti. 

Na edição de 1994, a orelha foi escrita por Aguinaldo Silva (que antes de se tornar escritor de telenovelas foi um corajoso repórter de polícia): “Há um trecho de Asfalto selvagem que mostra o quanto Nelson sabia ser irônico. Um personagem cita o conselho de Guimarães Rosa aos jovens escritores: ‘Não façam biscoitos, façam pirâmides’. E aí outro responde: ‘Mas o que é a obra de Guimarães Rosa senão uma grande pirâmide de confeitaria?’. Em Asfalto selvagem, o que temos é um grande romancista que nunca se preocupou em ‘fazer pirâmides’ e que, talvez pela modéstia no ato criativo, acabou por fazê-las. E, certamente, não de confeitaria”.

As palavras do escritor Aguinaldo Silva fazem eco às do romancista e ensaísta Alberto Mussa: “Há quem pense que o gênio de Nelson Rodrigues seja maior que o de Guimarães Rosa. É a minha opinião”. A polêmica viveu em Nelson, e Nelson vive na polêmica.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.                          

Quem escreveu esse texto

Alvaro Costa e Silva

É colunista da Folha de S.Paulo e autor de Dicionário amoroso do Rio de Janeiro (Casarão do Verbo)