Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A destruição como uma política do espírito

Obra destaca a raiz doutrinária espiritual de Olavo de Carvalho, Steve Bannon e Aleksandr Dugin

01mar2021

“A classe realmente nova e potencialmente revolucionária da sociedade consistirá de intelectuais, e seu poder potencial, ainda não constatado, é muito grande, talvez grande demais para o bem da humanidade.” Essa especulação, formulada em 1970 por Hannah Arendt em seu clássico e controvertido ensaio sobre a violência Crises da república (Perspectiva, 1973), escrito no contexto de suas reflexões sobre ação política e revoluções, soa como um agouro tornado real no mundo descrito por Benjamin Teitelbaum em Guerra pela eternidade: o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista, lançado pela Editora da Unicamp.

Teitelbaum construiu com maestria uma narrativa de não ficção cujos protagonistas, Steve Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho, são figuras inegavelmente poderosas, ancoradas na posição de “guru”, “estrategista” ou “professor”. Que não sejam caracterizados como “intelectuais”, categoria muitas vezes reservada, como sinal de prestígio, a figuras da convencional trajetória universitária, é apenas um aspecto do mundo contra o qual tais figuras pretendem fazer sua revolução. 

O grande mérito de Guerra pela eternidade é chamar a atenção para a raiz doutrinária comum às convicções de seus protagonistas, sem falsear suas contradições nem exagerar suas afiliações de pensamento. Ao público acostumado a atribuir a pecha de louco ou estúpido a essas pessoas, o livro incomoda profundamente (ao falar de Steve Bannon, personagem que ocupa a maior parte dos capítulos, Teitelbaum chega a qualificá-lo de “culto” e “brilhante, até”). Mas o livro deve ser lido justamente por isso. 

A tal raiz doutrinária que liga os personagens é uma corrente filosófica profundamente obscura e marginalizada, o Tradicionalismo. Ao contrário das expectativas, não se trata de uma seita de conspiracionistas altamente organizados que se articulam como uma igreja ou seguem dogmaticamente um livro, mas de um conjunto quase caótico de ideias, que oscilam entre revolta contra o mundo moderno e contemplação espiritual de ciclos do tempo.   

Como o próprio autor ressalta na nota que abre o livro, ele é “etnógrafo de profissão, não jornalista”. Guerra pela eternidade foi uma obra encomendada pela editora, e não o resultado de anos de pesquisa acadêmica, embora seja obviamente decisiva a experiência de Teitelbaum no estudo da extrema direita (que começa, curiosamente, pelo seu interesse, como etnomusicólogo, pelos gêneros apreciados por grupos desse espectro ideológico). Que o livro esteja inserido no “espaço confuso” entre a etnografia e o “jornalismo investigativo”, como também escreve o autor na nota introdutória, é mais um mérito do que um defeito. 

Sem incorrer em vícios academicistas, Teitelbaum se vale tanto da virtude empática necessária à boa etnografia quanto da capacidade dos bons jornalistas de construir narrativas eletrizantes. O resultado é uma forma de apresentação de pesquisas que poderia inspirar mais acadêmicos a se aventurar fora de suas zonas de conforto. O método etnográfico está lá, mas a apresentação é uma narrativa que dá ao leitor a possibilidade de conhecer seus protagonistas de forma mediada, como personagens situados em contextos, e não como figuras esdrúxulas que postam barbaridades em redes sociais. Se isso faz o autor caminhar pela linha fina entre a apresentação empática de ideias e a simpatia por esses personagens (há uma cena, já no final do livro, envolvendo Olavo de Carvalho e um sundae, que apresenta um lado do ideólogo altamente contrastante com sua persona pública), esse parece um risco que vale a pena assumir.

A repulsa gerada por figuras como Bannon, Dugin e Olavo de Carvalho muitas vezes redunda no clima de caos do qual eles próprios se aproveitam 

A repulsa gerada por figuras como Bannon, Dugin e Olavo muitas vezes redunda na incompreensão que aumenta o clima de incerteza e de caos do qual eles próprios se aproveitam. Enxergá-los por meio de suas próprias relações e de suas referências comuns é, assim, não uma tentativa de humanizar suas excentricidades abomináveis, mas de situar suas ações e suas crenças em um contexto que possa ser, pelo menos, inteligível por seus oponentes.

Núcleo espiritual

O Tradicionalismo, termo que Teitelbaum prefere grafar em maiúsculas como maneira de diferenciá-lo de seu uso mais corrente (modo de pensar de “quem prefere fazer as coisas à moda antiga”), designa uma escola espiritual e filosófica cuja relação com a política institucional é errática. Ao fim e ao cabo, o livro não prova a existência de uma ligação forte entre o que dizem e fazem personagens como Steve Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho com a Escola Tradicionalista tal como pensada por seus primeiros e principais expoentes, o francês René Guénon e o italiano Julius Evola. O autor é, na verdade, especialmente cuidadoso em não formular essa tese. O que busca colocar em evidência é que, a despeito de diferenças substantivas — as quais resultam até mesmo em posições geopolíticas diametralmente opostas —, todos os personagens do livro são antagonistas radicais da modernidade. Essa oposição aparece como a espinha dorsal do Tradicionalismo tal como descrito por Teitelbaum, uma doutrina espiritualista que não vê sentido linear na passagem do tempo e não interpreta a história em termos de progresso. 

A visão dos tradicionalistas sobre o tempo parece ser a chave para sua compreensão; não por acaso, aparece no título do livro. Enxerga a história como um ciclo: uma era de ouro, na qual a sociedade é liderada por “sacerdotes”, é seguida por períodos de decadência que finalmente resultam na era das trevas sob a liderança de “escravos”, da qual novamente emerge a liderança espiritual, recomeçando o ciclo. Por isso, o Tradicionalismo não tem interesse nem em uma mudança em direção ao futuro nem em um retorno ao passado, mas em um estado de coisas “eterno”. A “guerra pela eternidade”, um embate travado inclusive internamente no próprio Tradicionalismo, é uma luta pela possibilidade de revelar à humanidade a existência de um “núcleo espiritual” que é deixado de lado pelas perniciosas visões materialistas. Quanto mais a sociedade passa a valorizar o material em detrimento do espiritual, mais ela mergulha nas trevas. 

Eternidade como metapolítica

No livro, a modernidade, uma época por excelência materialista, é o contraponto perfeito da tradição, em que a espiritualidade é a força motriz da sociedade. Vivendo nesse contexto bastante hostil do mundo moderno, tradicionalistas não são em geral pessoas com grandes pretensões políticas. A história contada por Teitelbaum é em boa medida uma história de como alguns personagens (além dos três protagonistas, há todo um rol de coadjuvantes) criaram oportunidades de mudança tanto por meio da criação de canais alternativos contra a ideologia dominante quanto por meio de táticas de inoculação de certas ideias nos canais convencionais. 

Os personagens de Teitelbaum oferecem apenas ideias muito abstratas — espiritualidade, transcendência, eternidade — e, assim, estão longe de se tornar “donos do mundo” por terem projetos concretos de mudanças sociais. Para conseguirem adesões, a metapolítica (noção cunhada pelo filósofo italiano Antonio Gramsci e apropriada pelos tradicionalistas) aparece como base fundamental de suas ações. Trata-se de criar situações políticas por meio de influência na cultura. Entre os métodos mais compartilhados, além da via mais óbvia de criação de doutrinas por meio de interpretações grandiosas da realidade (Dugin parece ser o mais pródigo nessa tarefa), estão fundar escolas para ensinar novos líderes, espirituais ou políticos (o curso de filosofia on-line de Olavo de Carvalho logo vem à mente) e usar a internet como ferramenta de potencialização do alcance de canais alternativos (como foi o caso de Bannon, com seu site Breitbart News e também a atuação da Cambridge Analytica nas eleições de 2016 nos Estados Unidos). 

A despeito de diferenças que resultam até em posições geopolíticas opostas, todos os personagens do livro são antagonistas radicais da modernidade

É também pela metapolítica que esses personagens alimentam um sentimento antissistema, que se mistura com nacionalismo e antiglobalismo. Um dos ingredientes fundamentais dessa atuação é deslegitimar os sistemas modernos de compreensão de mundo — a ciência ou as pessoas e os lugares convencionais ligados à produção de conhecimento, como escolas e universidades. 

Por sua forma de abordagem, atraem descontentes da mais variada sorte. Um dos aspectos mais interessantes do livro de Teitelbaum é revelar como certa “adaptação” do Tradicionalismo gerou uma versão especialmente atraente da metapolítica. Enquanto o “primeiro” Tradicionalismo divide as pessoas em castas, das quais só algumas teriam acesso a valores elevados espiritualmente — Evola reserva isso aos sacerdotes arianos —, nas falas de Steve Bannon fica evidente uma ideia diferente, a do “self-made man” espiritual, um ideal que está mais ao alcance daqueles menos “contaminados” pela modernidade: a classe operária e o campesinato. 
Teitelbaum chama essa mudança em relação à hierarquia rígida tradicionalista de “mobilidade espiritual”.

É nessa inovação sobre o Tradicionalismo de Guénon e Evola que está o ponto de toque com o populismo em sua versão atual: a onda populista que nasce democraticamente e que se torna antidemocrática acumula força na defesa das maiorias de “pessoas comuns”, como explica Nadia Urbinati (citada no livro). Isso fica evidente nas entrevistas de Steve Bannon, e o capítulo sugestivamente chamado de “Metafísica do campesinato”, que formula com mais clareza esse ponto, é uma espécie de clímax da primeira metade do livro, protagonizada por Bannon. Mas a introdução de Olavo de Carvalho, após esse primeiro clímax, nos apresenta a hipótese de essa “metafísica do campesinato” ser na verdade uma ideia original do próprio Olavo, expressa em sua caracterização da população cristã rural dos Estados Unidos como uma espécie de “reserva oculta” da força espiritual antimoderna.  

O livro trata de outras figuras, inclusive em cenários secundários da narrativa, que ligam mais claramente suas ideias tradicionalistas a visões segregacionistas e racistas, mas Teitelbaum destaca que o papel das noções de raça e gênero não teve centralidade nas interações com a maior parte dos personagens que entrevistou. Mesmo assim, notou que, embora Steve Bannon declare não se alinhar com distinções de raça como faz a linha tradicionalista “original”, geralmente se refere a uma classe trabalhadora branca como os “escolhidos” espirituais. A análise da relevância do racismo declarado e do racismo estrutural no Tradicionalismo “reformulado” sem dúvida precisa de mais material e de outros tipos de abordagens, que ultrapassam o conteúdo do livro.

Tática de destruição

Teitelbaum mostra a aproximação entre Dugin e Vladimir Putin, conta do envolvimento de Bannon com o Brexit e com a eleição de Trump — que lhe concedeu perdão presidencial contra acusações de fraude —, do lugar à mesa de Olavo de Carvalho, que vai além de jantares diplomáticos para influenciar até as escolhas políticas do governo Bolsonaro, e mesmo do espaço que Gábor Vona, com Tibor Baranyi, parece ter aberto para Viktor Orbán se fortalecer na política húngara. Na própria reconstrução do livro sobre essas interações e seus contextos, fica clara certa parcela de coincidência, acumulada com múltiplas tentativas — que apenas eventualmente são bem-sucedidas — e com aberturas criadas por crises políticas. 

Quando os protagonistas do livro de Teitelbaum influenciam os que estão no poder, amoldam o sentimento antissistema em mais uma forma de inovação em relação às raízes do pensamento tradicionalista: adotam uma tática de destruição e desmobilização do próprio governo. Steve Bannon comenta, pelo relato de Teitelbaum, que “uma maneira de fazer isso é começar pelo topo, colocando pessoas em posições de poder que sejam hostis às instituições às quais elas mesmas servem”. Nada que espante a nós, brasileiras e brasileiros, vivendo o desgoverno destrutivo de Bolsonaro. Nos Estados Unidos de Donald Trump, ainda pré-pandemia, Teitelbaum descreve que logo ficou visível a realidade de “kamikazes em cargos de liderança”. 

O autor mostra detalhes de um universo de convicções que, apesar de ocuparem lugar central no cenário político, são mantidas deliberadamente ocultas

É uma lógica de aceleração do fenômeno descrito pela parábola que Teitelbaum usa para abrir o livro, do teórico tradicionalista Julius Evola. Na parábola, o homem que quer derrotar um tigre e conseguir sua liberdade não o confronta, mas fica montado no animal até que ele envelheça e fique cansado o suficiente para que o homem possa estrangulá-lo. Para Evola, a única forma de derrotar a modernidade liberal seria esperar a crise que vem com ciclos do tempo — que se repetem, de forma não linear. A novidade de agir pela metapolítica sobre a cultura e colocar o poder político a serviço da destruição é imobilizar o que move o tempo moderno até ele se despedaçar. 

Apenas por revelar esse sentido espiritual atribuído a projetos de destruição de conquistas das democracias liberais, Guerra pela eternidade já valeria a leitura. Mas vai muito além ao mostrar detalhes de um universo de convicções que, apesar de ocuparem lugar central no cenário político atual, são mantidas deliberadamente ocultas ou excessivamente confusas e abstratas como parte da própria estratégia de acelerar o cansaço do tigre. Teitelbaum, com sua empatia etnográfica e seu talento narrativo, parece apostar no esclarecimento — essa aspiração tão caracteristicamente moderna — como uma via importante para lidar com as pretensões destrutivas de seus personagens e eventualmente derrotá-los.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Adriane Sanctis

Doutora em filosofia e teoria geral do direito, co-organizou o livro Direito global e suas alternativas metodológicas (FGV Direito SP).

Luciana Silva Reis

É professora de direito na Universidade Federal de Uberlândia e pesquisadora associada ao Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap.