Literatura,

Meus 120 dias com o marquês

Tradutora de clássico da literatura libertina narra as dificuldades para transpor a obra maior de Sade para o português

15nov2018

Foram 120 dias com o marquês de Sade. Quatro meses, o tempo exato que os quatro libertinos passam trancados no castelo de Silling, praticando os piores vícios. No meu caso, foram só virtudes: passei os 120 dias e alguns fiapos de noites traduzindo, castamente, o romance Os 120 dias de Sodoma.

Para quem não se lembra do “relato mais impuro que jamais foi feito desde que o mundo existe”, Os 120 dias se situa pouco depois da morte de Luís 14, em 1715. O quarteto formado por um duque, seu irmão bispo, um magistrado e um banqueiro instala-se num castelo isolado na Floresta Negra, na companhia de quatro alcoviteiras, oito meninas e oito meninos na adolescência, oito homens “dotados de membros monstruosos para as volúpias da sodomia”, e quatro criadas (sim, Sade tem uma curiosa predileção pelos múltiplos de 4).

Mas não se pense que o elenco fazia o que lhe ditasse o desejo. Não. Por mais orgiásticas que fossem, as devassidões praticadas em Silling obedeciam a regras estritas, com numerus clausus e divisão de tarefas, seguindo um planejamento minucioso feito para transportar os libertinos à quintessência da volúpia — pois é esta, muito mais que o prazer, a verdadeira matéria de Os 120 dias.

Uma regra estipulava que as quatro cafetinas contassem noite após noite, quais Sherazades de lupanar, e durante quatro horas, o cotidiano do bordel e as taras de seus clientes. Depois de ouvi-las, os aristocratas encenavam os relatos com as esposas e filhas, as crianças e os jovens bem-dotados, “seres fracos e acorrentados”, entregando-se a variações em torno das perversões e perversidades. Ao todo, as historiadoras do sexo contariam seiscentas paixões, entre simples, duplas, criminosas e assassinas.

Traduzir Sade não é para espíritos fracos. Os 120 dias tem singularidades que desestabilizam a rotina. Não me refiro aos tropeços que surgem em textos que se caracterizam por um vocabulário muito específico (neste caso, pornô tendência hardcore) a ser transposto em português com a fidelidade possível. Muitos desses já encarei. Mas pela primeira vez senti, ao traduzir, um misto de horror, interesse e repulsa, e até mesmo algo como a dor fina de um alfinete que, embutido no teclado, me espetasse o dedo. Diante dos “crimes coloridos de alguma infâmia”, flagrei-me, a um só tempo, querendo avançar na leitura, mas reticente, franzindo a testa, fazendo careta, tapando o nariz.

Pesquisa

Explico-me: se as primeiras cem páginas de Os 120 dias exigiram longas pesquisas e consultas a obras do século 18, as cento e tantas seguintes sugeriram outras providências. É nessa altura do romance que explode a escatologia que, tanto quanto os suplícios, marca a estética sadiana. É aí que as fantasias de cama e de mesa são realizadas simultaneamente pelos devassos e seus súditos, que as imundícies se misturam às iguarias dos banquetes, que os fluidos corporais se juntam na mesma taça aos vinhos e licores.

Por dois séculos, o manuscrito passou de mão em mão, de país em país, até ser declarado, em 2017, ‘tesouro nacional’

Era de imaginar que essa coprofilia empesteasse o castelo hermeticamente fechado durante aqueles 120 dias de inverno. Mas, o meu computador? Pois foi minha impressão. Houve dia em que cogitei uma borrifada de Bom Ar em torno da tela, outro em que pensei em passar no teclado umas gotinhas do Jo Malone: Amber & Lavender. Não estava excluído pedir à editora um adicional de insalubridade.

Mas isso era apenas o prelúdio do que viria na última parte do livro. Aí é que Sade se põe a desfiar as trezentas paixões criminosas e assassinas. Aí é que o abominável marquês justifica sua fama. Aí é que Sade é sádico. É um tal de morde, aperta, amassa, quebra, arranca, que instintivamente eu virava o rosto e interrompia a tradução. As “paixões” são contadas de modo sucinto, quase esquemático, o que paradoxalmente torna mais vívida a sensação de realidade: cheguei a ver na tela o sangue escorrendo das pernas queimadas, os seios despedaçados com alicate, a torrente de lágrimas dos dentes arrancados e dedos quebrados; cheguei a ouvir os uivos de dor do ferro em brasa nas entranhas, do lacre derretido pingando no corpo. E nem falemos da zoofilia e da necrofilia. Eram alucinações, sem dúvida, que sempre se desfaziam quando eu voltava a me concentrar nas letrinhas miúdas da edição de Sade em papel-bíblia, na coleção da Pléiade. 

Berço esplêndido

Donatien Alphonse François, o marquês de Sade, nasceu em berço esplêndido, em 1740, em Paris. Seu pai, conde de Sade, era de família nobre da Provence aparentada a ninguém menos que Laura, a musa cantada por Petrarca no século 14. Tanto quanto a nobreza, a libertinagem passou de geração em geração. 

O conde foi preso na juventude por “pegação” homossexual no jardim das Tulherias. Aos quatro anos, o filho foi morar na Provence com um tio padre que também se meteu em encrencas libertinas. Terá sido aí que se iniciou na libidinagem? O fato é que, aos dezessete anos, ele teve, no regimento dos carabineiros, as primeiras experiências militares e libertinas. E, quando partiu para a Guerra dos Sete Anos (1756-63), um companheiro de farda alertou: “Sade é furiosamente combustível: as alemãs que se cuidem!”. 

Não espanta que, dos 74 anos que viveu, Sade tenha passado 27 em prisões ou asilos para doentes mentais. Foi na Bastilha que escreveu Os 120 dias. Foi no hospício de Charenton que morreu, em 1814. Seus crimes não variavam: libertinagem, sodomia, sequestro de menores, dívidas, tentativa de envenenamento — o “veneno” era pó de cantárida, reputado afrodisíaco que ele misturava às bebidas nas orgias.

Na Bastilha gozou de certas mordomias, como dispor dos próprios móveis, de papel de boa qualidade, tinta e penas. Foi lá, no dia 22 de outubro de 1785, que começou a passar a limpo os rascunhos de Os 120 dias. Exatos 37 dias depois, o manuscrito estava pronto: 33 folhas de 12 cm de largura, coladas umas nas outras e formando um rolo de mais de 12 metros, escrito dos dois lados.

Sade já ensaiara outros opúsculos obscenos, em que não é fácil estabelecer o que são recordações de sua vida de devasso e o que são elucubrações de uma imaginação exacerbada pelos sucessivos cativeiros. Em carta enviada à mulher em 20 de janeiro de 1781, quando já esboçava Os 120 dias, ele mesmo distinguia o libertino que sempre foi e os fantasmas que corroíam sua mente.

Fantasia ou realidade, provavelmente os dois, o fato é que ele considerava Os 120 dias a sua primeira grande obra, aquela com futuro assegurado. Pois foi justamente esta que, no dia em que trocou a Bastilha pelo asilo de Charenton, ficou para trás, assim como os móveis, os seiscentos livros e os quinze volumes de obras manuscritas. Dias depois a prisão da Bastilha era invadida e sua queda acendia o estopim da Revolução Francesa. Sade nunca mais veria sua grande obra, pela qual choraria “lágrimas de sangue”.

Manuscrito

Por mais de dois séculos, Os 120 dias de Sodoma passou de mão em mão, de país em país. Num percurso inusitado para uma obra literária, o precioso manuscrito foi, sucessivamente: encontrado na cela de Sade por um certo Arnoux de Saint-Maximin; vendido a uma família da Provence; revendido a um colecionador alemão, que o publicou pela primeira vez em 1904, em Berlim; recomprado em 1929 pelo editor francês Maurice Heine, a pedido do visconde de Noailles; publicado enfim na França, entre 1931 e 1935; censurado e confiscado em 1957, levando seu editor, Jean-Jacques Pauvert, o primeiro a assinar com seu nome uma edição de Sade, a ser condenado por ultraje à moral pública e religiosa; roubado em 1982; redescoberto em Genebra num antiquário de raridades eróticas; exposto pela primeira vez em 2004.

Em 2014, o manuscrito voltou à França na bagagem de um colecionador que especulava com obras raras e o comprou por 7 milhões de euros. Mas o negócio foi à falência, e Os 120 dias de Sodoma seguiu para um leilão judicial, com lance inicial de 4 milhões de euros e rumores de que seria arrematado por um turco ou um americano. Salvou-o a decisão do Estado francês de declará-lo, em 18 de dezembro de 2017, dois dias antes da venda, “tesouro nacional”, uma espécie de tombamento pelo qual a obra não pode sair do país e se incorpora ao patrimônio cultural francês.

Sade escreveu sua obra na linguagem da corte de Luís 14. O tom às vezes é empolado e pedante, até mesmo quando ele descreve as piores grosserias. Emprega de propósito (e eu com ele) uma linguagem levemente arcaizante. E tem a habilidade de atribuir aos personagens falas condizentes com sua origem e classe social: o linguajar castiço dos fidalgos libertinos não é o popularesco das cafetinas e das criadas, nem o familiar das esposas, nem o infantil das crianças confinadas no castelo.

Vocabulário

Mas o grande desafio do romance era o vocabulário obsceno. Sua tradução deveria se adequar ao estilo e à época, a fim de que Os 120 dias não ficasse com jeito de roteiro de filme pornô e seu vocabulário não pecasse por anacronismo. Fui em busca da pornografia praticada em prosa ou verso no nosso século 18 — busca um tanto infrutífera. Cotejando esse escasso repertório com textos do século seguinte, pareceu-me que, entre nós, os termos pornográficos envelheciam ou saíam de moda.

O desafio do romance era o vocabulário obsceno. Sua tradução deveria se adequar ao estilo e à época. Salvou-me Manuel Maria Barbosa du Bocage

Paradoxalmente, na França tabuísmos, gírias e palavrões são mais infensos aos modismos. Com raras exceções, o léxico das travessuras de Sade é corriqueiro até hoje. Mas e em português? Tesão já seria corrente no século 18? E sacana teria o mesmo sentido? E já se praticava (ou melhor, já se incorporara o termo) sacanagem no Brasil quando Sade trabalhava em seu manuscrito na Bastilha?

Os dicionários brasileiros ainda são falhos em datação de palavras. Valeram-me duas obras contemporâneas de Sade, o Diccionario da lingua portugueza, de Antonio de Moraes Silva, de 1789; e o Novo diccionario crítico e etymologico da lingua portuguesa, de Francisco Solano Constâncio, de 1836. Ambos foram muito úteis para a abonação do glossário escatológico, mas nem um nem outro registra termos chulos.

O marquês de Sade não é de meias-palavras, nem recorre a metáforas veladas: tudo nele é explícito, pesado, direto. Tampouco é chegado à sinonímia para designar as partes mais ou menos recônditas de cavalheiros e damas, e menos ainda para descrever as posições em que os libertinos se refestelavam — fossem poses de acrobacia, fosse no estilo papai e mamãe ou Kama Sutra. Com ele, é um termo para cada parte do corpo, para cada pirueta.

Que tal uma olhadinha em Gregório de Mattos? Bem, seus escritos datavam de um século antes, mas talvez me servissem de inspiração. Até onde fui, o Boca do Inferno me pareceu suave para as orgias do marquês. Então, tentei Manuel Ignacio da Silva Alvarenga, poeta arcádico nascido em Vila Rica em 1749. Seus versos estão reunidos em Glaura, mas o erotismo das flores e botões, das grutas úmidas e dos doces abrigos era demasiado lírico para o meu propósito.

Salvou-me Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). Este, sim, entendia do riscado! E por sorte, o auge de sua intensa produção literária datava justamente dos anos 1780, quando Sade dava forma a Os 120 dias. Foi nos Sonetos de Bocage que descobri que “tesão” e “sacana” (mas “sacanagem”, não) já estavam, fazia ao menos dois séculos, incorporadas à língua pátria: les mots et les choses. Com elas iniciei uma espécie de glossário pornográfico setecentista. 

E, quando já começava a reler a tradução, descobri outro poeta português que me veio a calhar: António Lobo de Carvalho (1730-1787), cujas “Poesias joviaes e satyricas, colligidas e pela primeira vez impressas” eram altamente licenciosas e atentatórias aos bons costumes de fins do século 18. Graças aos dois, pude enriquecer o glossário com minhoquinha, membrudo, michê, rameira, fanchono, chupão, bimbar e outros tesouros menos publicáveis. 

Nestes tempos bizarros, em que pipocam surtos de falso moralismo, meus agradecimentos vão para esses dois escritores malditos e malvistos em sua época — assim como Sade —  e que, mais de dois séculos depois, se esgueiram, sorrateiros, nas páginas da edição de Os 120 dias de Sodoma publicada pela Penguin-Companhia, graças ao que praticaram de mais transgressor: a linguagem obscena. 

Quanto a Sade, há consenso de que foi em Os 120 dias de Sodoma que ele escreveu suas páginas mais admiráveis. Nos primeiros dias de convívio com o marquês, fiquei dubitativa quanto à possibilidade de restituir ao leitor brasileiro o efeito que Sade cria com seu realismo cru e cruel, com suas descrições de mentes e corpos dedicados integralmente à mais perturbadora volúpia. Ao fim dos 120 dias que passamos juntos, ele na orgia dos sexos, eu na das palavras, me convenci de que o romance desse inimigo de qualquer moral e fanaticamente ateu amplia as fronteiras da compreensão da natureza humana.
 

Quem escreveu esse texto

Rosa Freire d’Aguiar

Tradutora, escreveu Memória de tradutora (Escritório do Livro).