Literatura infantojuvenil,

De jogos vorazes a crianças peculiares

O mundo distópico de Panem ganha um tratado de filosofia política, enquanto o mundo peculiar é ameaçado por uma profecia

01jul2020

Uma América do Norte distópica em que crianças lutam pela sobrevivência e um mundo paralelo habitado por pessoas com poderes incomuns. São os cenários de A cantiga dos pássaros e das serpentes, de Suzanne Collins (Rocco), e A convenção das aves, de Ransom Riggs (Intrínseca). O primeiro expande o universo da trilogia Jogos vorazes, já o segundo é o quinto volume da série O lar da srta. Peregrine para crianças peculiares

Esses dois universos conquistaram o público jovem e ganharam adaptações cinematográficas, com graus variados de sucesso comercial — enquanto os quatro filmes de Jogos vorazes (2012-15) abriram um nicho para distopias protagonizadas por adolescentes e alçaram a atriz Jennifer Lawrence ao status de estrela, O lar das crianças peculiares, dirigido por Tim Burton, não seguiu o caminho aberto por Harry Potter, tanto que não foi produzida nenhuma continuação. 

Jogos vorazes tem como alvo um público mais adulto, pelas doses mais explícitas de ação e violência, enquanto O lar da srta. Peregrine para crianças peculiares seria voltado para pré-adolescentes por parecer um X-Men vintage. Entretanto, as duas séries não se furtam a tocar em temas difíceis. 

O lar da srta. Peregrine para crianças peculiares, lançado originalmente em 2011, apresentou no primeiro volume homônimo o jovem Jacob Portman buscando traçar o passado de seu avô Abraham, que morreu de modo misterioso na sua casa na Flórida. Para isso, viaja a uma soturna ilha no País de Gales, onde Abraham, um polonês judeu, se refugiou durante a Segunda Guerra Mundial. Lá, Jacob encontra crianças invisíveis, flutuantes e extremamente fortes preservadas em uma fenda temporal criada pela srta. Peregrine, uma ymbrine, cujo poder é se transformar em pássaro e manipular o tempo — na fenda, as crianças não envelhecem e revivem o mesmo dia há décadas. A chegada de Jacob muda a dinâmica do grupo, ao atrair para o local os etéreos, seres que se alimentam de peculiares, e os acólitos, seus subordinados. Apesar de adotar um tom mais leve nesse primeiro volume, o autor aprofundou o lado mais sinistro desse mundo nos volumes seguintes, Cidade dos etéreos, Biblioteca de almas e Mapa dos dias. Neles, aborda temas como o racismo no mundo peculiar dos Estados Unidos, a falta de transparência no governo das ymbrines, a desigualdade social entre fendas temporais, o vício em determinadas substâncias feitas da alma de peculiares e a tentativa desesperada de trapacear a morte e de evitar o envelhecimento.

O trabalho de Riggs teve como inspiração fotos antigas, em preto e branco, compradas em feiras e mercados de pulgas e que fazem parte de coleções particulares. A essas imagens intrigantes (e sinistras) e sem nenhuma conexão aparente Riggs conferiu novos significados, criando um rico arsenal de personagens fantásticos. Essas fotos, que ilustram os livros, proporcionam materialidade para o mundo peculiar, ao mesmo tempo em que ressignificam o nosso mundo real, causando estranhamento e introduzindo elementos mágicos nele.


Os acólitos são seres que não possuem pupilas e trabalham para os etéreos no mundo peculiar [Divulgação]

A fórmula que funcionou bem nos primeiros três volumes, que formam uma trilogia que acaba no auge — Biblioteca de almas é o melhor livro da série —, perdeu um pouco do brilho no quarto livro, Mapa dos dias, ao deixar algumas pontas soltas e desprezar alguns personagens que foram protagonistas nos títulos anteriores. É o caso de Emma Bloom, uma antiga paixão do avô de Jacob e com quem o jovem se envolve amorosamente, e da introdução de uma profecia sobre o fim do mundo peculiar, da qual a garota Noor Pradesh é peça-chave — além de novo par romântico de Jacob.

O quinto volume se concentra em grande parte em Jacob ajudando Noor a se adaptar ao mundo peculiar e tentando descobrir o paradeiro da mãe adotiva dela enquanto pesquisam o significado da profecia. É um livro que prepara o terreno para o sexto volume, que provavelmente terá um desfecho que se pretende grandioso. O enredo tal como vem sendo construído atrapalha o verdadeiro coração da série, que são os seus personagens, desde o carismático garoto invisível Millard Nullings até a ressabiada Olive, a garotinha-flutuante. E, pior, joga para escanteio Abraham Portman, o avô de Jacob, a verdadeira figura que assombra a série. Todas as ações de Jacob são feitas pensando no avô, tanto para emulá-lo (os dois possuem o mesmo poder de ver os etéreos, que são invisíveis para os demais peculiares) quanto para sair da sua sombra. 

A questão é que ainda há muito a ser explorado sobre o passado de Abraham; nem Jacob nem o leitor ainda têm uma ideia de quem ele era. Se trabalhava de modo independente salvando crianças peculiares de etéreos ou se simplesmente as sequestrava, se estava a serviço de alguma organização paralela ou a mando de alguma ymbrine. O próprio desgoverno do mundo peculiar dos Estados Unidos e a geopolítica das relações internacionais desse universo já seriam um tema e tanto, podendo funcionar até como um comentário sobre os conflitos atuais. Contudo, o que se vislumbra — cuidado, spoiler! – é o já esperado retorno do vilão Caul.

Contrato social

Nesse ponto, Jogos vorazes é mais bem resolvido. A série original seguiu ao longo de três volumes — Jogos vorazes, Em chamas e A esperança — a história de Katniss Everdeen se voluntariando no lugar de sua irmã mais nova para participar dos Jogos Vorazes, como um dos 24 tributos dos doze distritos de Panem, governados com mão de ferro pela Capital. Nesses jogos, o vencedor é quem sobrevive à matança realizada entre os jovens. Com referências que vão de mitos gregos a reality shows (além de acusações de apropriações da trama do filme japonês Battle Royale), os livros de Suzanne Collins mostram Katniss lutando para não ser mais um joguete nas mãos dos mais poderosos, tanto dos governantes da Capital quanto dos rebeldes, enquanto procura salvar aqueles que ama — não há uma luta clara do bem contra o mal, apenas política. É um mundo polarizado, bem mais parecido com o que vivemos hoje do que com aquele de quando o primeiro livro foi lançado, em 2008.

A cantiga dos pássaros e das serpentes não é propriamente uma continuação, pois se passa 64 anos antes dos acontecimentos desencadeados por Katniss e seu protagonista é Coriolanus Snow, o gélido vilão da trilogia original. Collins foi bastante criticada por fãs ao revelar que seu retorno à série depois de dez anos teria como foco a juventude do antagonista de Katniss. Histórias que contam as origens de personagens vilanescos são arriscadas: ao procurarem mostrar as razões que levaram essas figuras para o lado do “mal”, as narrativas tendem a humanizá-los, despertando uma empatia no público — ainda mais se o personagem for carismático. Não é exatamente o caso de Coriolanus, mas também não é esse o objetivo de Collins.

As epígrafes já mostram a que veio o livro: Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, William Wordsworth e Mary Shelley — e nos agradecimentos, a autora menciona o pai por ensiná-la sobre o Iluminismo. Essas referências parecem deslocadas do que se espera de uma distopia juvenil, vista como uma forma de entretenimento ou uma espécie de fuga da realidade. No entanto, Collins não se intimida e faz de A cantiga dos pássaros e das serpentes uma espécie de tratado da filosofia política de Panem, a partir da trajetória do homem que fortaleceu a Capital e revolucionou os Jogos Vorazes.

Riggs conferiu novos significados a imagens antigas, criando personagens fantásticos

A obra mostra o jovem Coriolanus Snow lutando pela sua sobrevivência: órfão de uma família tradicional de Panem que entrou em declínio com a guerra, ele é designado junto com outros colegas da escola para ser mentor dos tributos da décima edição dos Jogos Vorazes, então ainda sem muita relevância. Indicado para treinar Lucy Gray Baird, do 12º distrito, uma cativante cantora que se autodenomina como de “distrito nenhum”, ele acaba se envolvendo com ela. No entanto, as relações românticas e de amizade são vistas por um viés mais cético do que na trilogia original, pois a narrativa segue o ponto de vista de Coriolanus e não de Katniss. Isso também coloca o leitor na posição de espectador dos Jogos Vorazes, e não como participante da arena, tornando-o parte do público e cúmplice da matança.

Collins está mais interessada em discutir política. As conversas que Coriolanus tem com a Idealizadora dos Jogos, a sádica dra. Gaul, em torno dos grandes Cs — caos, controle e contrato social — são um vislumbre teórico do que se tornarão os Jogos Vorazes e, consequentemente, toda a Panem. Coriolanus pondera sobre a verdadeira natureza do ser humano, que ele acredita ser violenta — “A humanidade em seu estado natural é um menino com um porrete” —, e, justamente por isso, é necessário ter um Estado forte e centralizador para proteger os humanos uns dos outros, tendo o controle sobre uma “guerra eterna”, que seria travada nas arenas dos jogos. “Quem somos determina o tipo de governo de que precisamos”, reflete Coriolanus. É um comentário que nos faz pensar sobre como vários governantes de extrema direita chegaram ao poder nos últimos anos e como será o futuro que se avizinha.

Caos e ordem

Nos títulos dessas narrativas, há referências a pássaros e aves. São símbolos de sabedoria em O lar da srta. Peregrine e de liberdade e resistência em Jogos vorazes. O tordo é onipresente na saga de Katniss Everdeen, tanto que ela é vestida como o pássaro para simbolizar a luta do distrito 13 contra a Capital. Uma versão híbrida dessa espécie, que repete não só o canto de outros pássaros como acontece na natureza, mas também frases e palavras ditas pelas pessoas, perturba Coriolanus Snow, por ser um lembrete de que nem tudo pode ser controlado. Isso o remete aos rebeldes — e à queda que lhe infligirá Katniss no futuro. Os pássaros trazem o caos a Panem, pois são disruptivos para o governo.

Já as aves de O lar da srta. Peregrine são o oposto do que os pássaros representam em Jogos vorazes. É o poder delas que mantém o mundo peculiar coeso. Ao criarem fendas temporais e manipularem o tempo, as mulheres mais velhas desse universo, que podem se transformar nas mais variadas espécies de seres alados, são as guardiãs da ordem desse universo. Sem as aves, o caos se instala.

Em várias mitologias, os pássaros são considerados mensageiros dos deuses pela capacidade de poderem ir do mundo celeste, habitado por seres divinos, para o mundo terreno, onde se encontram os humanos. Inclusive, é possível pensar que o título do quinto volume de O lar da srta. Peregrine faz menção ao poema persa do século 12, do místico sufi Farid Ud-din Attar, A conferência dos pássaros (Companhia das Letrinhas, 2013).

Collins torna seu livro uma espécie de tratado da filosofia política seguindo a história de Coriolanus Snow 

Nessa poesia, um grupo de pássaros se reúne para realizar uma jornada perigosa para encontrar o rei Simorgh, passando pelos vales da Procura, do Amor, da Compreensão, do Desapego, da Unidade, do Deslumbramento e da Morte. Apenas trinta sobrevivem à penosa viagem e, ao encontrar o rei, eles se surpreendem, pois veem a si mesmos — Simorgh, em persa, significa “trinta pássaros”. A maior — e mais dolorosa — aventura que se pode ter é o encontro consigo mesmo. E esse é, no fundo, o caminho trilhado pela literatura voltada para jovens: uma forma de tentar entender quem somos, para descobrir o que vamos nos tornar. 

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).