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A República de 88

Os bastidores da Assembleia Nacional Constituinte e seu projeto civilizatório são foco de livro de entrevistas

12nov2018

O início institucional se deu em 1987: num estival domingo de Brasília, 559 parlamentares investidos do Poder Constituinte reuniram-se no plenário do Congresso Nacional para elaborar o documento que consagraria uma nova ordem política no país. O desfecho só se daria 583 dias depois, num dos mais complexos e tortuosos processos constituintes de que se tem notícia. Mas a Constituição de 88, como produto final de uma odisseia — foi por acaso comandada por um Ulysses —, demarcou um projeto civilizatório sem precedentes no Brasil.

Às vésperas de a Constituição tornar-se balzaquiana, começam a surgir livros que exploram aqueles agitados meses entre 1º de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988. Sai agora um volume com 43 entrevistas realizadas pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho, em que se busca desvelar os bastidores das atividades da Assembleia Nacional Constituinte.

O livro ostenta as vantagens e as desvantagens da pesquisa oral. Lê-se com gosto e interesse a maioria das entrevistas; Maklouf procura nos instalar numa conversa íntima, no encalço dos “segredos” a que se refere o título. Em boa medida, é bem-sucedido: mostra-se perspicaz e preparado. Leva o depoente a abrir-se em confidências e até mesmo indiscrições: ameaças armadas, agressões sofridas, adultérios, confissões de graves distúrbios psíquicos, gabolices e arrependimentos — do que fez e do que deixou de fazer. Não é pouco obter tudo isso de tarimbados políticos, assessores e lobistas. 

Digna de registro é a opção por manter a crueza (e mesmo a linguagem chula) com que vários relatam a atuação que tiveram na Constituinte: os segredos, parece considerar o jornalista, devem ser repassados aos leitores sem filtros, no estilo, na sintaxe e no linguajar com que lhe foram contados. Há um ganho em realismo: por exemplo, a naturalidade com que um certo lobista conta sua atuação na Constituinte — direta e pessoalmente ou com ajuda de parlamentares — em defesa dos interesses da mídia televisiva e radiofônica poderia fazer corar até mesmo um odebrechtiano diretor das ditas Operações Estruturadas. Mas é cansativa a insistência do repórter em saber detalhes das luxuriantes festas promovidas por lobistas e congressistas. Poder, dinheiro e sexo: para o jornalista, teriam sido esses os ingredientes fundamentais do funcionamento da Constituinte?

Alarido

O recurso ao face a face e ao microfone escancarado tende a exponenciar maneirismos e idiossincrasias, com frequência resvalando para disputas e rancores pessoais. O mais das vezes, o que se obtém são versões — frequentemente contraditórias — dos fatos. O alarido nos instala nos domínios de um relativismo que pode terminar por confundir. Mário Covas foi eleito líder do PMDB pelo tonitruante discurso que pronunciou ou pelo voto dos sarneístas, para enfraquecer Ulysses? Foi positivo ter tido Bernardo Cabral como relator-geral? O Centrão era o atraso ou, pelo contrário, evitou que a Constituição saísse com arcaísmos? A Comissão de Redação de fato inseriu disposições não apresentadas e não votadas no plenário?

Há convergências nos relatos que dão certa segurança sobre alguns fatos: por exemplo, a duração do mandato de Sarney e a escolha do sistema de governo pairou feito uma espada sobre os constituintes — mas era a espada do general Leônidas Pires, pivô da tutela das Forças Armadas nos pontos que lhes afetavam diretamente; a figura do ministro das Comunicações Antonio Carlos Magalhães como operador político do governo Sarney; o constante duelo de Covas com a direita compactada no conservador Centrão, mas também com Ulysses Guimarães; a ação pendular do ex-Sr. Diretas, imbuído do sentimento da missão de levar a Constituinte a cabo e assim pavimentar sua campanha presidencial em 1989.

Ademais, Maklouf não indica os critérios da seleção dos 43 entrevistados: foram os principais tomadores de decisão? Facilidade de acesso? Representatividade das diversas correntes na Constituinte? Preferências pessoais? E há uma lacuna clamorosa:  não se indica a data (nem o local) em que se deram as entrevistas, privando o leitor de importantes elementos para contextualizar o que se lê.

Mas, a despeito da farta colheita dos fatos & segredos, diversos enigmas persistem: na primeira fase, que podemos chamar a “Constituinte das comissões”, que forças políticas e atores conferiram ao Regimento Interno uma estrutura ultradescentralizada, ônus e bônus de larga parte dos trabalhos? Por que José Lourenço (líder do PFL) deixou Covas nomear todos os relatores das Comissões Temáticas, se a Aliança Democrática entre as duas agremiações já fora rompida? Em que medida o oficialmente desprezado Anteprojeto Afonso Arinos impactou o produto final? Qual a extensão da tutela das Forças Armadas sobre os trabalhos? 

Na segunda fase, “Constituinte das lideranças partidárias”, continuam nebulosos os fatores e a cronologia do surgimento do Centrão. E há a charada mais importante: afinal, o que queria Sarney? Por que fez o arriscado cálculo pelos cinco anos de mandato? E por quê, mesmo após obter esse mandato e o presidencialismo, seguiu acuando os trabalhos a ponto de insinuar em pronunciamento público o fechamento da Constituinte? Qual era o jogo entre forças conservadoras, grande mídia, militares e Sarney? Parece que havia uma linha traçada pelos poderes constituídos, da qual o poder constituinte congressual não podia passar. Isso ainda demanda pesquisa e elaboração.

A edição é bem-cuidada, com esclarecimentos sobre o que se vai ler já na apresentação, cronologia de 1985 a 1988, fotos, minuciosa indicação de fontes e razoável referenciamento da literatura acadêmica. O desconcertante são as impropriedades banais — erros de ortografia, falhas na acentuação. Grafar “Antônio” com circunflexo era uma rata que ACM jamais tolerou, redundando em fúria e perseguições ao incauto escriba. 

Maklouf não se deixa perder em teorias sobre transições de regime e processos constituintes, e a escolha por buscar os fatos, nada mais, é legítima e respeitável. Mas convinha levar em conta o alto grau de correlação entre a natureza da transição política e o formato, a dinâmica e os resultados da Constituinte Congressual. O pacto pela reconstitucionalização só foi possível pela gradativa convergência de direita e esquerda, conservadores e progressistas, às regras do jogo democrático. Como marcos dessa trajetória, recordem-se o “Documento dos Oito”, no qual empresários criticavam a política econômica de Geisel e clamavam pela abertura política, e “A democracia como valor universal”, artigo em que Carlos Nelson Coutinho concita as esquerdas ao desafio do jogo institucional. 

A reconversão democrática incidiu com nitidez na Assembleia Constituinte: se oscilou entre festa cívica e guerra; afinal foi a transigência, a negociação e a legítima barganha, o compromisso e a aceitação das perdas que viabilizaram o arremate do processo, na forma da Constituição de 1988. Impressiona ver nos depoimentos o espírito de aceitação das eventuais derrotas, apanágio do jogo democrático — espírito que se desfez nos últimos três anos e que vai levando a pique a República de 1988 e seu projeto civilizatório.

Quem escreveu esse texto

Antônio Sérgio Rocha

Professor da Unifesp, é autor de Sistema político brasileiro (Plêiade).