História,

A formação da resistência negra

Trajetória dos quarenta anos do Movimento Negro Unificado é contada por meio de fotografias e relatos apaixonados dos seus fundadores

01nov2020

Manifestações, libertar mentes e pulsos
Buscando soluções, fim dos choros e soluços
[…] Eles gostam quando preto dança, grita, chora
Eles temem quando um preto pensa

“Movimento”, de BK (Abebe Bikila)

“Hoje é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o negro. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo”, dizia a carta aberta distribuída aos manifestantes e lida em coro por mais de 2 mil vozes em frente ao Theatro Municipal de São Paulo no dia 7 de julho de 1978 — dia do ato público considerado marco do nascimento do Movimento Negro Unificado (MNU). Fatidicamente, foi o ano em que o Ato Institucional número 5 (AI-5) completou dez anos. Embora soubessem da importância de sua manifestação, os militantes e fundadores do mnu ainda não tinham a dimensão da potência que essa entidade assumiria na história política brasileira, como reduto de preservação e valorização da vida da população negra, açoitada havia pelo menos 428 anos até aquele momento, além de estar sob o jugo de noventa anos de uma farsa calcada no mito da democracia racial. 

É desse fenômeno que o fotógrafo Ennio Brauns, Gevanilda Santos, mestre em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e diretora da Soweto Organização Negra, e José Adão de Oliveira, um dos fundadores do mnu, partem para organizar o documento histórico intitulado Movimento Negro Unificado: a resistência nas ruas. Publicado pela Edições Sesc em coedição com a Fundação Perseu Abramo, o livro é uma imersão na história dos quarenta anos do MNU e da militância negra organizada (que vai dos anos de 1930 até 2018). 

A obra é contundente ao colocar o negro no centro da luta pela superação do sistema escravista e pelo reconhecimento do Estado como responsável por uma política de morte destinada exclusivamente aos corpos negros. A hipocrisia moral da equidade racial é desnudada no livro. 

Nas fotos, não há margem para se pensar na branquitude ou na negritude de quem as tirou

O volume é um registro histórico grandioso, permeado por um emaranhado de documentos e dados, que não perde a capacidade de emocionar o leitor com as fotos da vivência da negritude e os relatos duros — mas sem perder a ternura — dos griots que deram vida, em 18 de junho de 1978, ao Movimento Unificado contra a Discriminação Racial, que depois foi rebatizado de MNU por Abdias do Nascimento, para incluir a palavra “negro” no nome da organização, um mês após a grande manifestação do Municipal. 

Nascido para dar voz àqueles que foram sufocados — como o jovem feirante Robson Silveira, de 27 anos, torturado e morto na 44ª dp de Guaianazes, no fatídico 18 de junho de 1978  — ou excluídos — como os quatro jovens do time de vôlei do Clube de Regatas Tietê que foram alvo de discriminação racial ao serem impedidos de jogar semanas depois do assassinato de Robson —, o MNU foi fundado em meio ao momento tenso do ato em São Paulo, narrado com maestria no livro. 

Memória visual

Para contar os fatos importantes dos quarenta anos de lutas contra a estrutura racista do Estado brasileiro, são utilizados os acervos de nove fotógrafos que registraram o surgimento e o desenvolvimento do MNU, bem como de outras entidades congêneres e contemporâneas. Os cliques generosos e emocionantes de Ennio Brauns, Jesus Carlos, Joca Duarte, Juvenal Pereira, Luiz Paulo Lima, Rosa Gauditano, Samuel Tosta e Wagner Celestino, somados aos relatos, constroem uma obra intrincada do ponto de vista da harmoniosidade entre a escrita e o recurso visual de tal modo que não há margem para se pensar na branquitude ou na negritude dos olhos que vislumbraram o nascimento da história. 

Dentre as fotografias riquíssimas estão aquelas que captaram desde o surgimento do grupo nas escadarias do Municipal até as manifestações subsequentes, passando pelos cultos de religiões de matriz africana, pelos congressos, pela participação do grupo afro Ilú Obá de Min no Carnaval e pelo abraço de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, no mestre Abdias do Nascimento.

Além disso, há imagens dos rostos atentos de jovens negros durante apresentações de break no centro de São Paulo, passando por fotos de repressão policial e de expressões artísticas de pessoas pretas, que retratam a crueza desse período de efervescência cultural e política da negritude em meio ao recrudescimento da repressão da ditadura civil-militar. Mesmo assim, há duas fotografias que se destacam do conjunto da obra.

A primeira é uma foto de um registro do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que atualmente faz parte do acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que comprova a presença de infiltrados do regime para monitorar as reuniões dos militantes negros. A imagem é o lembrete da vulnerabilidade do povo preto durante o período da ditadura, tempo em que éramos marcados pela exclusão do crescimento econômico artificial e pela perseguição policial violenta deliberada nas periferias, além de termos sido perseguidos pelo regime quando buscamos nos organizar.

Outra fotografia que tolhe a respiração e relembra de forma visual a infeliz necessidade da existência do mnu como instrumento de luta é o registro precioso de Jesus Carlos, que fotografou a militante fundadora do grupo Fátima Ferreira segurando o filho Samoury no colo com a mão direita, enquanto empunha com a esquerda a faixa contra a tríplice exploração da mulher negra (raça, classe e gênero). O registro foi feito durante a Caminhada por Zumbi, passeata que percorreu o Viaduto do Chá, no centro de São Paulo, em 20 de novembro de 1979. Foi o primeiro ano em que a data passou a celebrar o Dia da Consciência Negra. Essa vitória nasceu do reconhecimento da data pelo MNU durante a 3ª Assembleia Nacional em Salvador, em 4 de novembro de 1978.

Como fenômeno pujante da resistência negra, o nascimento do MNU representou um avanço revolucionário da luta contra a opressão do povo preto. Haja vista que o racismo é um mecanismo que se reorganiza de tempos em tempos para manter a reprodução das desigualdades e violências que afligem sobretudo os negros, como explica o professor Silvio Almeida em seu livro Racismo estrutural (Pólen Livros). 

Continuidade

Esse revide histórico representado pelo MNU é indissociável da ancestralidade — elemento valioso da cultura negra — e do reconhecimento de que o novo sempre vem, mas sem romper com a continuidade do trabalho construído pelas pretas e pelos pretos velhos. Por isso, metade do conteúdo do livro é destinado a discorrer sobre os movimentos que antecederam e eram contemporâneos ao mnu, que contribuíram para a construção das bases para empreender a luta por igualdade num período de repressão. 

O volume apresenta ao leitor a Frente Negra Brasileira (FNB), uma das mais importantes entidades do Movimento Negro. Fundada em 16 de setembro de 1931, a FNB promoveu a difusão de um trabalho potente de cidadania nas comunidades negras por meio de ações socioculturais e educativas. Para os quase 20 mil filiados, a carteirinha da Frente Negra representava o registro de identidade perante as autoridades. Além da FNB, dissolvida durante a instalação do Estado Novo de Getúlio Vargas, é apresentado o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). Esse organismo reuniu militantes importantes que viriam a participar da fundação do MNU, como o vice-presidente Milton Barbosa, que colaborou ao lado de grandes nomes para reorganizar as atividades da entidade que visava promover a consciência negra por meio das artes.

No bojo das contribuições históricas são apresentados a Feconezu, um festival itinerante de promoção da cultura negra no interior de São Paulo, e a turma que batia latinha, como eram denominados os jovens precursores da cultura hip-hop no Brasil, por meio do break dance, com grandes expoentes como Gerson King Combo no Rio de Janeiro e Nelson Triunfo em São Paulo. Era uma expressão genuína de empoderamento e autoestima preta que desembocou no rap, que hoje impacta a minha geração com nomes como Emicida, Djonga, BK, Sant e niLL. Manifestações artísticas do povo negro que eram duramente reprimidas pelas forças policiais, por conta da incompreensão quanto ao seu valor como arte e expressão cultural. 

Já no âmbito da produção intelectual, são mencionados o jornal literário Cadernos Negros e o jornal alternativo Versus. O segundo foi a primeira publicação jornalística a garantir espaço para a discussão da luta racial, por meio da revolucionária editoria Afro-Latino-América, na qual escreveram grandes nomes do MNU como Hamilton Cardoso, Jamu Minka e Neusa Maria Pereira, que assina um dos artigos mais impactantes do livro.

Foi da força feminina que a luta se formou, algo reproduzido com grandiloquência no livro

Neusa foi responsável por escrever o capítulo que narra o nascimento do mnu e o protagonismo da mulher negra nesse processo, no qual fundadoras como Lélia Gonzalez e Lenny Blue construíram as estratégias da luta tal qual os companheiros homens. O artigo “Pela mulher negra”, de sua autoria, emociona por escancarar, sem meias palavras, a força da mulher preta que “defende o seu destino, seu direito de ser mulher e negra, nessa sociedade em que a hipocrisia dita as normas de conduta”.

Foi da força feminina, condicionante do espírito de unidade do mnu, que a luta se formou, algo reproduzido com  grandiloquência em cada uma das palavras do livro, que denunciam, como escreveu Neusa Pereira, que nós, homens e mulheres negros, “somos considerados cidadãos de segunda classe, mas no dia 7 de julho, em São Paulo, mostramos publicamente que não aceitamos essa classificação”. Desde então, há 42 anos o mnu mostra que o negro não aceita ser sub-representado, asfixiado e silenciado, como fizeram com George Floyd, João Pedro, Miguel Otávio e tantos outros. Foram essas mortes pelo método racista de reprodução que motivaram as novas lideranças a ocuparem as ruas (a verdadeira casa do MNU) no dia 7 de junho de 2020, no Largo da Batata, um mês antes do aniversário da entidade. 

Continuidade. É disso que o livro fala e a partir disso que o movimento se expressa, como afirmou a atual coordenadora nacional do grupo, Ieda Leal: “Nesses quarenta anos de luta, nós procuramos olhar para frente, para os desafios postos às conquistas que perseguimos, mas também olhamos para o retrovisor: qual era o mote da nossa luta lá em 1978, qual era a nossa narrativa, qual era a nossa discussão, quais eram as denúncias que nós oferecíamos ao Estado brasileiro […] contando sempre com uma necessidade de construir uma ampla aliança com outros segmentos do movimento negro no Brasil?”. Unidade. Continuidade.

Quem escreveu esse texto

Weslley Galzo

É jornalista, repórter no portal iG, correspondente de São Miguel Paulista na Agência Mural de Jornalismo das Periferias e com colaborações no Perifaconnection.