História,

Culpados e inocentes

Ensaio de Karl Jaspers e diário de conservador anti-Hitler expõem responsabilidade coletiva dos alemães pelo nazismo

15nov2018

A Alemanha foi derrotada em maio de 1945, mas a mentalidade nazista resistiu por bem mais tempo. Um sociólogo francês, bastante jovem naquela época — Edgar Morin —, notava entre os alemães inúmeros sinais de nostalgia, apoio implícito ou justificação em face das ações hitleristas.

“Tudo se deve aos abusos cometidos pelo Tratado de Versalhes”, diziam alguns, referindo-se às pesadas condições financeiras impostas à Alemanha pelos países vitoriosos na Primeira Guerra Mundial (1914-18). “Já não estamos sofrendo bastante com os bombardeios e com a escassez de alimentos? Por que querem ainda nos punir pelo que os nazistas fizeram?”

Outros iam além. No cúmulo da cegueira, havia alemães reclamando do “bom tratamento” dado aos que saíam dos campos de concentração. Com tantas casas destruídas, “os judeus foram os primeiros a ganhar alojamento, esses safados”. Também lastimavam as “perseguições” que os alemães agora sofriam dos poloneses: “As liberdades que esses cavalheiros tomam com os membros de uma raça civilizada clamam pela justiça celeste”.

Muitos outros exemplos dessa incapacidade de ver o que se fizera no nazismo aparecem no livro de Morin O ano zero da Alemanha. Para ele, não se tratava de simples sobrevivência das crenças totalitárias. Com as cidades e a economia destruídas, a Alemanha era cenário de um desespero universal; expostos durante anos a uma campanha de mentiras em que acreditavam cada vez menos, os alemães já não queriam acreditar mais em nada — nem nas informações reais divulgadas pelos aliados.

Tendo chegado aos limites do desespero e da descrença, os alemães sobreviviam ao niilismo total recuperando os destroços que lhes servissem da mistificação hitlerista.

A propaganda aliada, por sua vez, marcava-se pela mais completa falta de tato. Cartazes com os cadáveres emaciados de Auschwitz tinham como legenda a frase “Eure Schuld”, “culpa de vocês”. Era uma acusação pesada, em especial para aqueles que, sem concordar com Hitler, viram-se impedidos de esboçar qualquer resistência, dada a realidade do estado policial em que viviam. Obviamente tal argumento era usado das mais diversas formas, honestas ou desonestas.

É nesse clima que o filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969) escreveu um curto ensaio, A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. Célebre inicialmente como psiquiatra, e depois como expoente do existencialismo, Jaspers tinha cinquenta anos quando Hitler subiu ao poder. Proibido de exercer sua cátedra (sua mulher era judia) e com suas publicações vetadas, Jaspers viveu um “exílio interior” em seu país, mudando-se para a Suíça em 1948.

Ler seu livro nos dias atuais exige um pouco de paciência. Diante da enormidade do que fizeram os nazistas e do amplo apoio que tiveram da população, tornam-se algo chocantes os cuidados, as ressalvas, as delicadezas de Jaspers durante boa parte do texto. Falta-lhe, ademais, o senso psicológico concreto, o poder de análise individualizado e agudo que outro existencialista, Jean-Paul Sartre, demonstrava na mesma época ao escrever sobre a mentalidade dos franceses que colaboraram com o nazismo.

Apesar das longas introduções ao assunto, Jaspers não é nem um pouco benevolente com seus compatriotas. Refuta, sem azedume, os diversos argumentos que estes invocavam em defesa própria. Expostos ao horror das bombas incendiárias, sofrendo a morte de muitos entes queridos, sem casa, sem trabalho e sem comida, nem por isso os alemães poderiam dizer-se vítimas inocentes da guerra.

Culpa moral e culpa política

Há, sem dúvida, uma culpa criminal, que só pode ser atribuída aos líderes nazistas. Outras culpas, entretanto, devem ser identificadas. Podemos ter “culpa moral” (de não ter ajudado alguém, por exemplo) sem que isso signifique ter adotado um comportamento sanguinário. Há também uma “culpa política”.

“Diante dos crimes cometidos pelo Estado alemão”, diz Jaspers, “todo alemão é corresponsável”. No mínimo, beneficiou-se dos confortos trazidos por Hitler em detrimento dos povos perseguidos e dos países invadidos. 

Houve, ademais, algo que não pode ser chamado de culpa moral, mas sim de responsabilidade coletiva, na medida em que se permitiu — por inocência política, por ilusão, por indiferença ou comodismo — a ascensão de um bando de bárbaros ao poder.

Ainda que poucos alemães devessem ser punidos pelo nazismo, caberia a cada um, examinando sua consciência individual, rever tais atitudes. O apelo, reconhece Jaspers, só poderia ser ouvido por quem tivesse alguma consciência; não, claro, os nazistas renitentes ou os que se confessavam “culpados” por oportunismo.

Responsabilidade pelo nazismo, quando França, Inglaterra e os Estados Unidos também assistiram quietos às provocações de Hitler? Não aceito essa acusação, diz o aristocrata ultraconservador Friedrich Reck-Malleczewen, morto pelos nazistas no campo de Dachau em 1945. Seu Diário de um desesperado, escrito entre os anos de 1936 e 1944, aparece agora no Brasil. Escritor sem grandes méritos, o autor do diário se notabiliza pelo mais violento ódio aos nazistas.

Simplesmente não consegue compreender como a “sua” Alemanha — religiosa, ordeira, camponesa e honrada — se deixou levar por Hitler, aquele “Chefe Eunuco”, “esquizofrênico”, aquele “bandido sombrio”, liderando “uma massa sedenta de sangue”, feita de um “amontoado de assalariados, sargentos ensandecidos e virgens datilógrafas”. Há tanta lucidez quanto preconceito na fúria de Reck-Malleczewen. O problema do nazismo se fundamenta no surgimento do “homem de massa”, que “por sua mente e suas necessidades físicas, só pode existir no seu autocriado ventre de corrupção e trogloditismo”.

Detestável, também, a industrialização — destruindo as velhas florestas e alimentando a máquina militar hitlerista. “A gasolina, como a base de toda alegria motorizada, contribuiu mais para a humanidade que o álcool.” Ao mesmo tempo que aponta a irracionalidade do antissemitismo — e o quanto a perseguição aos judeus atrairia inimigos de todos os países contra a Alemanha —, Reck-Malleczewen não se conforma com o vinho cheio de produtos químicos, com as “mulheres de traseiros grandes como quintais brincando de ser damas”, e com a arrogância dos alemães do Norte sobre sua bem-amada Bavária.

É o desespero de um conservador errado em muitas coisas — mas certo no essencial. Seu livro, escrito em plena fúria, é repetitivo e bizarro, mas não se limita a ser um documento histórico: oferece o consolo de ver como, em plena loucura coletiva, algumas pessoas não seguem o rebanho; até a esquisitice e o preconceito, por vezes, constituem uma salvação.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Coelho

Sociólogo e jornalista, é autor de Tempo medido (Publifolha) e Patópolis (Iluminuras).