Filosofia,

Diagnóstico do presente

Voltado a um público mais amplo que o acadêmico, livro examina a Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer em sua relação com a história

26nov2018

Escola de Frankfurt é expressão geralmente associada a pensadores alemães como Walter Benjamin, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, nascidos na virada do século 19 para o 20, que buscaram atualizar de maneiras inovadoras o pensamento de Karl Marx. 

Mas Escola de Frankfurt representa sobretudo um momento específico da vertente intelectual da Teoria Crítica, que se prolonga até o presente. A ela se filiam até hoje pensadoras e pensadores que pretendem desenvolver e atualizar as teses presentes no artigo publicado por Horkheimer em 1937, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Conforme o país, conforme a maneira como as obras desses autores clássicos foram recebidas, “Escola de Frankfurt” ainda é, às vezes, usada quase como sinônimo de “Teoria Crítica”. 

Sempre que um novo livro sobre a “Escola de Frankfurt” aparece, a primeira medida é compará-lo com os estudos de conjunto existentes. Nesse caso, estamos falando dos quatro livros que se consolidaram como estudos de referência. Formam também uma espécie de conjunto porque, de certa maneira, são complementares. 

O primeiro par é composto por A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-1950, de Martin Jay (de 1973, publicado no Brasil em 2008, pela Contraponto) e Wissenschaftsorganisation und politische Erfahrung: Studien zur frühen Kritischen Theorie [organização científica e experiência política: estudos sobre a primeira Teoria Crítica], de Helmut Dubiel (1978).

O estudo inaugural de Jay cobre o período até 1950 e tem o grande mérito de fazer como que a biografia de uma instituição, o Instituto de Pesquisa Social, vinculado à Universidade de Frankfurt desde a sua fundação e dirigido por Horkheimer a partir de 1930. Com isso, evita todo o problema de saber como posições teóricas tão díspares podem ser agrupadas sob um rótulo tão estranho quanto uma “Escola” — que funcionou no exílio e não em Frankfurt a maior parte desse período. 

O livro de Dubiel é uma bem-sucedida reconstrução teórica da lógica de funcionamento da dinâmica interna do Instituto. Abrangendo praticamente o mesmo período coberto por Jay, procura mostrar em que condições funcionava o “materialismo interdisciplinar” dos anos 30 e as mudanças que levaram às posições defendidas por integrantes do Instituto na década de 1940.

Ao explorar as tensões entre teoria e prática em cada momento histórico, o livro põe o dedo na ferida certa

O segundo par é formado por A Escola de Frankfurt: hstória, desenvolvimento teórico, significação política, de Rolf Wiggershaus, de 1986 (lançado no Brasil em 2002), e Der nonkonformistische Intellektuelle: die Entwicklung der Kritischen Theorie zur Frankfurter Schule [o intelectual não conformista: da Teoria Crítica à Escola de Frankfurt], de Alex Demirovi?, de 1999.

O livro de Wiggershaus segue um pouco a pista de Jay, só que estendendo a reconstrução até a década de 1980. A diferença é que Wiggershaus, de certa forma, tem como foco organizador a produção da Dialética do Esclarecimento, escrita por Horkheimer e Adorno e publicada em 1947. A semelhança com a abordagem de Jay está em tomar como fio condutor se não o Instituto enquanto tal, pelo menos a figura central de seu diretor por quase trinta anos, Horkheimer. (A biografia intelectual de referência no caso específico de Horkheimer é de John Abromeit, Max Horkheimer and the Foundations of the Frankfurt School, de 2011.)

É uma abordagem que pode ser aproximada da reconstrução detalhada por Demirovi? do período que vai desde o retorno do Instituto a Frankfurt, em 1950, até a morte de Adorno, em 1969, na medida em que se concentra nas figuras de Horkheimer e de Adorno. De certo modo, Demirovi? leva adiante uma trilha que já tinha sido aberta por Jay, quando escreveu: “O que tem de ser lembrado, entretanto, é que a noção de uma escola específica não se desenvolveu senão depois de o Instituto ter sido forçado a deixar Frankfurt (o termo mesmo não foi usado até que o Instituto retornasse à Alemanha, em 1950)”. Interpretar esse dado como a criação de um rótulo (“Escola de Frankfurt”) para servir de amplificador das intervenções públicas de figuras como Horkheimer e Adorno no ambiente do pós-Guerra alemão pode ajudar a entender a perspectiva de Demirovi?: seu foco está nas diferentes formas de ação em que se envolveram os dois pensadores, desde artigos em jornal e intervenções radiofônicas e televisivas até palestras públicas e cursos universitários.

Jeffries

Nesse quadro, como situar o livro de Stuart Jeffries, de 2016? A primeira coisa é dizer que ele não quis escrever um livro acadêmico, mas um volume academicamente informado, com potencial de atingir um público mais amplo. É parecido nisso com a intenção de Wiggershaus. Parecido também pelo período que pretende cobrir, o último século, em grandes linhas.

Uma pena, entretanto, que, mesmo academicamente informado, não dê sinais de ter lido os livros de Dubiel e de Demirovi?, que teriam muito a ajudar na abordagem, já que o principal eixo da proposta de Jeffries é apresentar a história do último século por meio das teorias dos autores examinados. Pena também porque Dubiel e Demirovi? realizam no detalhe o que se apresenta como segundo eixo fundamental do livro de Jeffries: a relação entre teoria e prática. Prática enquanto prática científica, prática como prática política e como prática de intervenção na esfera pública.

São essas, em resumo, as características distintivas do livro de Jeffries: destinado a um público mais amplo que o acadêmico, entrelaçando história e teoria, perpassado pelo problema da relação entre teoria e prática, cobrindo um longo período de tempo. As realizações e as deficiências do livro vêm desse conjunto de características.

Ao vincular de maneira inseparável teoria e momento histórico, Jeffries apresenta a Teoria Crítica a partir de um de seus pilares fundamentais, o diagnóstico do tempo presente. Para a Teoria Crítica, é central a ideia de que a verdade tem um núcleo temporal, que verdades estão sempre atadas a um tempo histórico determinado. Sem que deixem em nenhum momento de se apoiar, entretanto, em tendências históricas que projetam a análise para além do momento presente. Porque é característica distintiva da Teoria Crítica que a teoria não se limite ao presente, mas igualmente às potencialidades melhores desse presente, incorporando essas possibilidades à própria compreensão do presente.

Ao explorar as tensões entre teoria e prática em cada momento histórico, o livro põe o dedo na ferida certa. É frequente a acusação a pensadoras e pensadores da Teoria Crítica de desconexão com as lutas emancipatórias. Frequentemente, a acusação é feita de maneira rasteira e Jeffries se empenha em mostrar que a sutileza do pensamento é amiga da ação transformadora genuína e que sutileza e pertinácia são sempre necessárias e estão presentes nos pensadores que examina no livro. Mas isso não quer dizer que a sutileza não possa facilmente se tornar uma justificativa para a omissão e a abstenção. Em suma, não há que minimizar problemas e obstáculos inegáveis nessa tradição intelectual e Jeffries não os minimiza. É assim que consegue, em alguma medida, realizar um de seus principais objetivos, que é mostrar que a Teoria Crítica “merece ser redimida da ideia de que não tem nada a nos dizer no novo milênio”.

Às vezes a explicação de muitos conceitos intrincados ao mesmo tempo fica achatada demais

Segundo o autor, o objetivo é “em parte uma biografia de grupo”, mas também refazer “uma narrativa que se estende de 1900 até agora, da era do transporte puxado a cavalo à era da guerra travada por drones não tripulados”. Mas pretender abordar mais de um século de teoria e de história acabou fazendo com que os últimos cinquenta anos ficassem magros, algo como quarenta páginas de um total de mais de 440. Tentar fugir da bolha acadêmica é uma excelente estratégia. 

Mas às vezes a explicação de muitos conceitos intrincados ao mesmo tempo fica achatada demais pelo recurso ao mais imediato, promete mais do que pode entregar. Como na passagem: “Mas o que esses termos significam? Alienação? Reificação? Consciência de classe? Fetichismo da mercadoria? Pense na cadeira na qual você está sentado, ou no iPhone ao qual você está ligado umbilicalmente”. E por aí vai.

Talvez também seja desnecessário recorrer a um anedotário duvidoso para escapar do tédio dos textos acadêmicos. Rastreando um falso tuíte de Jürgen Habermas, Jeffries chegou até um brasileiro, identificado apenas como Raphael, criador da falsa conta no Twitter. A anedota toma quase duas páginas e sua ligação com a categoria de esfera pública apresentada na sequência é mais do que gratuita.

É esse o balanço de um livro com muitas ambições. Não tem como realizá-las todas sem que apareça um especialista no assunto para apresentar a fatura acadêmica. O autor pode com razão dizer que não fez a despesa, que a conta não lhe cabe. Ou, se fez, pode bem dizer que vai pendurar a despesa até que o credor acadêmico se dê ambições pelo menos do mesmo tamanho que as suas. 

Quem escreveu esse texto

Marcos Nobre

É professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.