Ciências Sociais, Flip,

Do parque ao parking

Contar histórias incessantemente é o conselho de Ailton Krenak para adiar o fim do mundo

01jul2019

Ailton Krenak é um dos mais importantes ativistas e intelectuais indígenas do Brasil e se tornou mundialmente conhecido há 32 anos por sua corajosa participação como líder do movimento indígena na Assembleia Nacional Constituinte. Em uma cena inesquecível, de pé no púlpito, fitando a plateia de políticos, Ailton pintou lentamente o seu rosto de preto, em sinal de luto, enquanto discursava pela garantia dos direitos indígenas na nova Constituição. Desde então, vem executando mais uma de suas belas ideias para adiar o fim do mundo: contar histórias ininterruptamente, ao modo de Sherazade, a heroína das Mil e uma noites: “Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”. Sherazade adiou não somente o seu próprio fim, mas também aquele de outras donzelas como ela, pois o soberano, encantado e capturado pelas narrativas, desistiu de sua empresa de matar uma delas por dia. 

As histórias de Ailton, assim como as do xamã yanomami Davi Kopenawa e de tantos outros indígenas que insistem em narrá-las, são para nos salvar a todos, especialmente as próximas gerações. O autor coloca uma questão crucial: “Já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem?”. Em um movimento essencial iniciado pela ativista sueca de dezesseis anos Greta Thunberg — que desencadeou greves de estudantes mundo afora contra as mudanças climáticas —, os representantes dessas gerações começam a fazer ouvir o seu não.

Ideias para adiar o fim do mundo é um pequeno livro constituído por três capítulos, sendo o primeiro, homônimo do título, resultado de uma palestra proferida em março deste ano na Universidade de Lisboa. O segundo e o terceiro — denominados, respectivamente, “Do sonho e da terra” e “A humanidade que pensamos ser” — têm origem em palestras proferidas por Ailton Krenak na mesma cidade, no contexto do evento intitulado “Passado e Presente — Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura 2017”. Estive presente nesse evento e sou testemunha do forte impacto das falas de Ailton sobre as plateias. 

Ailton ensina que a luta por um mundo melhor envolve a dança, a música e as histórias contadas à noite

Os textos publicados mantiveram o tom da oralidade, o que, se por um lado preserva a vivacidade de sua narrativa, por outro acaba por incorrer em repetições entre os diferentes capítulos — esse aspecto talvez pudesse ter sido minimizado pela edição. A compreensão do conteúdo das falas também seria melhor se as informações sobre a origem dos textos estivesse no início do livro ou em notas de pé de página em cada capítulo, e não nas páginas finais. 

Há ainda um outro contexto narrativo implicado no livro, não mencionado pelos editores: Ailton nos esclarece que o título surgiu como uma “provocação” sua ao ser convidado a falar em um encontro sobre desenvolvimento sustentável na Universidade de Brasília. O nome do evento foi escolhido meio por acaso, em resposta rápida ao convite telefônico que o surpreendeu no quintal de sua casa. Ao contrário de suas previsões sobre a frequência do público em um dia chuvoso, deparou-se com um auditório lotado de gente querendo saber “essa história de adiar o fim do mundo”. Esse livro nos torna parte desse auditório.

Casa, minha casa

Quando assistia com meus filhos crianças ao filme E.T. O extraterrestre (1982), nunca deixava de me emocionar com as únicas palavras insistentemente repetidas por aquele ser esquecido fora do seu mundo: casa, minha casa.  Ele queria voltar para o lugar ao qual pertencia e que chamava de casa. É exatamente esse o sentimento que me despertou esse livro: pertencimento. Se me dói profundamente o que se vem fazendo com a minha casa, o estado e o país onde nasci, cresci, construí todos os meus laços afetivos e as minhas mais queridas memórias, imaginem o sentimento de Ailton, cuja casa se situa às margens do rio Doce, assassinado pela barragem da Samarco? E de seus parentes Yanomami, cuja casa se vê invadida por mais de 20 mil garimpeiros? É desse fim de mundo que nos fala o autor e para o qual propõe talvez a única saída possível: reconectarmo-nos com ele e com os seus habitantes, nossos corresidentes, companheiros nessa desenfreada queda. Esta é a nossa casa, não há outra. 

Ao mencionar outros lugares do mundo, Ailton chama a atenção para a diversidade não somente dos povos que os habitam, mas também para o estatuto de outros de seus constituintes: o que vemos como simples elementos da paisagem, como a serra Tatukrak e o rio Doce, chamado pelo nome de Watu (“nosso avô”) pelos Krenak, têm personalidade e devem ser respeitados. Em países mais abertos a essas questões, alguns desses elementos são juridicamente reconhecidos como pessoas, como a montanha Taranaki na Nova Zelândia. Tatukrak e Watu, ao invés de terem garantidos os seus direitos, foram sufocados pela lama tóxica da barragem. Uma das facetas do fim do mundo: “Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade”. E mesmo nos casos de exploração travestida de preservação: “como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra”. Na genial associação do autor, “começa como parque e termina como parking. Porque tem que estacionar esse tanto de carro que fazem por aí afora”.

 As palavras de Ailton, expressas com a visceralidade do membro de um desses povos que “ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra”, que parecem querer “comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra” e que se recusam a fazer parte de “uma humanidade com o mesmo protocolo”, enchem -me de esperança. Em meio às catástrofes sucessivas que experimentamos hoje, Ailton nos surpreende mais uma vez ao ensinar que a luta por um mundo melhor, que possamos chamar de casa, envolve não somente o ativismo explícito, mas a dança, a música, as histórias contadas à noite. Assim como a confecção de “paraquedas coloridos”, que possam nos alegrar enquanto estivermos caindo. Ailton deve saber, pois o seu povo tem conseguido adiar o fim do mundo já faz quinhentos anos.  

Quem escreveu esse texto

Aparecida Vilaça

Professora de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora Ficções amazônicas (Todavia, 2022).