Ciências Sociais,

Contar a própria história

Mais vendido na Flip 2019, livro de Grada Kilomba discute o racismo cotidiano relatado na voz de mulheres negras

01dez2019

A imagem da Escrava Anastácia amordaçada e silenciada está nas páginas iniciais de Memórias da plantação, de Grada Kilomba, o livro mais vendido da edição 2019 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), publicado pela Cobogó. A autora repete a pergunta da teórica indiana Gayatri C. Spivak: “Pode a subalterna falar?”. Não. Trata-se de não ter voz, de ninguém escutar.

Nascida em Lisboa, em Portugal, Grada tem raízes familiares em Angola e São Tomé e Príncipe. Estudou psicologia e psicanálise e é doutora em filosofia pela Freie Universität, em Berlim, onde reside desde 2008. O livro começa refletindo sobre a dificuldade de pessoas negras, principalmente mulheres, expressarem pensamentos e serem ouvidas dentro dos regimes coloniais e racistas. A crítica não livra o ambiente acadêmico, ainda dominado pelos homens brancos, que insistem em validar conhecimentos e decidir quem pode ou não difundi-los.

A partir da escuta de experiências cotidianas de mulheres negras confrontadas pelo racismo, Grada constrói o livro nascido de sua tese de doutorado. Não se trata de “dar voz” ao relato delas, trata-se de ouvi-las. Em seguida, ao explicar a metodologia, reforça que sua pesquisa é centrada em sujeitos. O objetivo é tirar pessoas negras do lugar de objetos de estudo e apresentá-las na primeira pessoa.

As duas observações iniciais me transportaram imediatamente para uma sala-contêiner na Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj), quatro anos atrás. Foi a primeira vez em que ouvi uma professora pautar o protagonismo negro no processo de escrita da própria história. A disciplina Intelectuais Negras, de Giovana Xavier, doutora em história e professora da Faculdade de Educação da ufrj, me apresentou às pensadoras afrodescendentes. Ali conheci da teórica bell hooks à escritora Conceição Evaristo, da historiadora Beatriz Nascimento à educadora Azoilda Loretto da Trindade, entre tantas outras.

Para pessoas negras, o ambiente acadêmico é um espaço de violência. Invisibilidade é a palavra que descreve a experiência de transitar em um território tomado pela narrativa única do eurocentrismo e dos saberes da branquitude. Se fosse resumir Memórias da plantação em uma frase, escolheria o título do primeiro livro de Giovana, lançado pela Malê também na Flip 2019: Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história.

Descolonizar o eu

Essa readequação está inserida no conceito de descolonização que a autora propõe. Segundo Grada, a ideia pode ser aplicada ao racismo, que reproduz a dinâmica do colonialismo: “Uma pessoa é olhada, lhe é dirigida a palavra, ela é agredida, ferida e finalmente encarcerada em fantasias brancas do que ela deveria ser”. Na linguagem colonial, seria o ciclo referente a descoberta, invasão, ataque, subjugação e ocupação. O “descolonizar o eu” é um caminho longo de várias etapas, que começa com pensar no que o racismo fez com você, passa pelo exercício de parar de se explicar para os brancos e termina com a pessoa negra tornando-se sujeito.

Descolonizar é um processo que também inclui a forma como enxergamos e aceitamos as heranças coloniais de nossa sociedade. As dependências de empregada, por exemplo, são resquícios de senzala eternizados pela arquitetura. As babás que vestem branco são mucamas do século 21. Outro exemplo é a palavra “mulata”, ainda repetida como elogio, que vem de “mula”, o animal infértil fruto do cruzamento do burro com a égua. Uma vez confrontado com essas leituras, não é mais possível “desver” os fatos.

Língua colonizada

A descolonização é um caminho sem volta. E a língua é um dos territórios que eternizam representações sociais e, por isso, preocupa a autora. Lançada em 2019, onze anos após a edição de estreia na Europa, que foi escrita em inglês — idioma que não demarca gênero em sua gramática —, a versão brasileira abre com uma carta de Grada, uma vez que a tradução para o português a espantou logo na primeira leitura. A obra que trata do racismo a partir da vivência de mulheres negras, e escrita por uma mulher negra, acabou parecendo ter sido redigida por um homem.

Para adequar a linguagem, Grada criou notas de rodapé para cada palavra no masculino que deveria idealmente ser neutra. A diagramação caótica levou à organização dos verbetes na carta introdutória. No livro inteiro, algumas palavras são grafadas para abarcar os gêneros feminino e masculino, buscando a neutralidade: outra/o, negra/o. Em português, “sujeito” e “objeto” são substantivos masculinos que não permitem variação de gênero; na obra, sempre aparecem em itálico.

À primeira vista, parece puro preciosismo literário. Não é. A autora faz questão de pontuar como a língua portuguesa, além de carregar as marcas de gênero, ainda preserva terminologias coloniais. Grada observa que a linguagem carrega a “dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e violência”. “Muitas das frases deixaram de fazer sentido. Todas as terminologias foram reduzidas ao gênero masculino”, relembrou ela na mesa “Anastácias redivivas — O feminismo negro em meio à tempestade”, em edição extraordinária da Festa Literária das Periferias (Flup), com autores convidados da Flip.

A 8ª edição do evento foi em outubro, no Museu de Arte do Rio (mar), na região conhecida como Pequena África, por englobar o cais de chegada dos africanos escravizados aos territórios onde as tradições e a cultura negras forjaram a cidade. Em linha com o pensamento de Grada, a Flup é exemplo de descolonização. Já teve como sede Cidade de Deus, Vidigal e Vigário Geral, entre outras favelas cariocas. É evento pensado para incluir a periferia no circuito literário. Além de levar escritores renomados aos territórios populares, apresenta a produção da periferia e forma leitores e autores.

Gostaria de limpar nossa casa?

Os episódios de racismo cotidiano relatados em Memórias da plantação foram vividos por duas mulheres negras: Alicia, afro-alemã, e Kathleen, afro-estadunidense que mora na Alemanha. Os títulos dos relatos são frases que sintetizam o racismo vivenciado e conectam raça e gênero. Por exemplo: “Você gostaria de limpar nossa casa?”. Os episódios são agrupados em categorias, como políticas do cabelo, segregação e contágio racial, cura e transformação. Assusta pensar que as entrevistas foram colhidas há pelo menos dez anos, na Alemanha, mas todos os relatos são absolutamente atuais e verossímeis no momento de apreço e saudosismo à herança colonial que atravessa o Brasil.

O ponto comum que permeia todos os relatos é a noção de que os negros são “os outros” em sociedades majoritariamente brancas. Diferem não somente no sentido da aparência física e estética, mas principalmente na impossibilidade de pertencer ao território mesmo tendo nascido nele, e de ser sempre visto como ser exótico, desconhecido, inadequado e marginalizado.

O olhar de estranhamento é sucessivamente descrito nos relatos das duas mulheres negras. Alicia é periodicamente questionada sobre sua origem e arranca risos debochados quando responde ser alemã. Para pessoas brancas daquele país, é impossível admitir que possam existir cidadãos fora do estereótipo ariano. O que define quem é diferente? Quem, portanto, seria o normal? Como e quem delimitou essas margens?

Pensar pessoas brancas como normais, pertencentes, me remete à história do Brasil. Os povos indígenas eram os donos dessa terra. Hoje, quando pensamos em políticas sociais, ainda que brancos sejam minoria populacional neste país, reforça-se o movimento de inclusão de pretos, pardos e indígenas. Estamos às vésperas de 2020, com 55% da população formada por negros, e os autodeclarados brancos ainda formam o padrão brasileiro de normalidade. São os corpos que vemos incansavelmente nas propagandas, nos espaços de poder e à frente dos noticiários.

Os movimentos afirmativos ainda são associados à caridade, à generosidade de “dar voz” a esses “outros”, que são maioria absoluta. Os africanos escravizados, é fato, também não são nativos deste território. Foram retirados de África à força e exportados como produto para outro continente. Quatro séculos depois, o Brasil é um país majoritariamente negro, prova de que a ideologia do embranquecimento fracassou. Mas esse grupo populacional segue inserido no lugar da outridade.

Na origem como colonizadores, hoje como minoria populacional, seriam os brancos os verdadeiros outros, não-pertencentes. Ainda assim, dominam as narrativas e determinam quando, onde, por que, como e o que pessoas negras e indígenas podem falar. Grada chama de “primitivismo moderno” o olhar da branquitude para pessoas negras encaradas como “os outros”. É a busca obsessiva pela história exótica que existe por trás de um corpo preto e engloba origem, família, hábitos ou gostos pessoais. Busca-se, segundo a autora, a experiência separada por um oceano Atlântico de diferença, que confirmará brancos e pretos como não pertencentes ao mesmo universo. Arrisco dizer que, no Brasil, o fetiche da branquitude pelo exotismo é escancarado pela valorização de histórias de superação. Há certo prazer em descrever pessoas negras, pobres, periféricas como guerreiras cheias de força de vontade, força, determinação, capacidade de vencer adversidades.

Grada também se apresenta como artista interdisciplinar. Transforma a escrita acadêmica em instalações, performances, vídeos e encenações. Logo no início de Memórias da plantação, apresenta o que chama de “percurso de conscientização coletiva” sobre a história colonial. O caminho inclui negação, culpa, vergonha, reconhecimento e, por fim, reparação. As mesmas palavras acompanhadas de seus significados compunham a instalação “The Dictionary” da exposição Grada Kilomba: Desobediências Poéticas, que ficou em cartaz na Pinacoteca de São Paulo de julho a setembro de 2019. Foi a primeira individual da artista no Brasil.

A autora afirma que a caminhada não se relaciona a valores morais, mas à responsabilização. Também não é restrita a governos ou sociedade organizada, diz respeito a todos os indivíduos. E é contínua. Você, em que etapa está?

Quem escreveu esse texto

Isabela Reis

É jornalista.