Arte e fotografia,

Infâncias roubadas

Ana Carolina soube usar seu ensaio para construir uma ponte entre dois mundos, o travesti e o cis

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

“Amapôa, você também é meio travesti com sua câmera: você só mostra o que quer e esconde o que te interessa.” Com esse comentário se encerra a matéria que a revista piauí, em junho de 2013, dedicou às fotos babado de Ana Carolina Fernandes. Quem o fez foi Sheila, a moça do cifrão tatuado no cóccix, fotografada nua, de costas, no momento em que ingressava no banheiro. Sei seu nome porque na matéria, ao contrário do livro Cinderela, houve um esforço para identificar as personagens e trazer breves informações sobre elas.

No livro, não só esses dados foram escondidos como também não há menção explícita ao fato de as fotos terem sido realizadas na “Mem de Sá, 100”, nome da exposição de 2013 dessas imagens e endereço do Casarão de Luana Muniz, a Rainha da Lapa (Mem de Sá, um dos maiores nomes do colonialismo português remetendo, hoje, a um espaço de ocupação travesti). No lugar de tudo isso, apenas “ensaio fotográfico que Ana Carolina Fernandes desenvolveu por mais de dois anos, convivendo com a comunidade de travestis do centro do Rio de Janeiro”. Fazem falta essas informações.

O que não faria falta, no caso, é a reprodução quase exata das palavras que o curador Eder Chiodetto usou para apresentar a exposição de 2013: se lá atrás já seriam uó expressões como “meninos-mulheres” para se referir a travestis, o que dizer ao vê-las numa publicação de 2020? “A imagem é também a voz desses delirantes e intrépidos meninos-mulheres”: queria ver é ter o delírio (porque intrepidez não seria suficiente) de fazer esse elogio pra Rainha da Lapa. Rapidinho ele descobriria o que ela queria dizer com “travesti não é bagunça”.

A fotógrafa soube usar seu ensaio para construir uma ponte entre esses dois mundos, o travesti e o cis

As lentes viciadas da cisgeneridade, ainda incapazes de nos entender senão através de seus velhos padrões sexistas. Eu me pergunto o que haveria de “meninos” naquelas fotos. Pelos faciais, músculos? Ainda não se acostumaram com a existência de mulheres fortes, mulheres fazendo a barba, mulheres à vontade com seus corpos. Apesar de estarmos em 2020, seguem buscando, em nós, indícios do genital que acham que temos, ao invés de perceberem a beleza desse feminino que estamos inventando, transfazendo. Nada contra esse ocó, aliás, belíssimo e ótimo crítico de arte cis. Só que de travestis ele não entende lhufas, vê-se.

Novo feminimo

O curioso, porém, é que as fotos são o exato oposto disso tudo. Ana Carolina, talvez por ser meio travesti, como bem pontuou Sheila, soube usar seu ensaio para construir uma ponte entre esses dois mundos, o travesti e o cis. Nesses registros, sinto o deslumbramento de uma mulher cis frente a novos desdobramentos da mulheridade, desdobramentos que a desafiam, que a condenam a ter que se redescobrir, se reinventar mulher.

Da mesma forma como a personagem do conto “Praça Mauá”, de Clarice Lispector, que ao ser confrontada por uma travesti se dá conta de que não é “mulher de verdade”, penso que não é possível adentrar esse universo e sair de lá sem se deixar abalar por essas novas configurações do feminino, sem querer se livrar desse “de verdade” atrelado ao seu “ser mulher”.

Memórias do primeiro homem transexual a passar por cirurgia de redesignação de sexo no Brasil mostram seu ativismo pioneiro

A poesia de ver a Valéria esparramada no sofá, seminua, fumando um cigarro enquanto faz a barba. Artifício e natureza, força e delicadeza, aquendação e ostentação, um feminino que ora tem muito peito ora peito nenhum e em ambos os casos desfila à vontade pela casa, livremente. Difícil pensar num privilégio maior do que conviver com tão profunda liberdade. E há quem ainda hoje queira nos convencer de que ser trans é nascer no corpo errado.

Esse mundo acha perigoso brincarmos de boneca, mas trata como brincadeira as violências que sofremos

Por trás dessa liberdade e leveza, no entanto, há um custo alto, que nem sempre se percebe ou se intui. Como diria Janaína Lima, uma das nossas mais destacadas ativistas, a dor da travesti está sempre a um passo de se tornar meme. Ao deparar-se com um ensaio chamado Cinderela e saber que se refere a travestis, o que então esperar? Princesas da Disney brincando de pornografia. Não é bem isso que Ana Carolina revela em suas fotos, mas tenho dúvidas se o público não travesti consegue ir além do “delírio” e “intrepidez” da apresentação.

Lembro quando, numa roda de amigas, nos demos conta de que boa parte de nós teve aS primeiraS experiênciaS sexuaiS (no plural mesmo) antes dos dez anos, nas mãos seja de meninos mais velhos, por vezes adultos, e que era bastante comum recordarmos essas experiências com carinho. Anos depois, quando comecei a estudar as obras autobiográficas trans, tive a surpresa de perceber o quanto isso não era verdade apenas para o meu círculo. Meu corpo, minha prisão: autobiografia de um transexual, de Loris Ádreon (Marco Zero, 1985); A princesa: depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das Brigadas Vermelhas, de Fernanda Farias de Albuquerque e Maurizio Jannelli (Nova Fronteira, 1994); Liberdade, ainda que profana, de Rudy (Razão Cultural, 1998); Eu, travesti, de Luísa Marilac e Nana Queiroz (Record, 2019). Uma citação desse último para que vocês entendam do que estou falando:
“Se for dar o nome de estupro a tudo que as meninas bem cuidadas de classe média chamam de violência sexual, já fui estuprada mais vezes do que posso contar. Por homens adultos que me buscavam na porta da escola primária e me comiam escondidos de suas esposas. Por estudantes que empurravam os pintos na minha boca no banheiro sem fazer caso ou pergunta e nem esperavam o gozo esfriar antes de me ameaçarem de morte caso eu contasse a alguém. Por muitos desses. Sobrevivi porque em todos os casos fui capaz de encontrar algum tipo de prazer e me refugiar nele.”

Infâncias roubadas, é isso o que penso quando vejo a foto da Aline apegada ao seu travesseiro da Cinderela, a Nathiele com seu fio dental de Ariel. Crescemos num mundo que acha que brincarmos de boneca é perigoso demais, mas que trata como brincadeira as violências e violações que desde cedo sofremos. Um mundo que ensina rapidamente aos meninos a língua da chantagem e do estupro e que nos ensina a buscar carinho na dor como forma de não enlouquecer. O que me remete à pergunta-chave lançada por Paul Preciado: “Quem defende a criança queer?”.

O que vocês, não travestis, estariam dispostas/os a sacrificar para poder ser quem são? Seriam vocês os homens que são, as mulheres que são, se tivessem que pagar o preço que nós, no passado e no presente, pagamos? Pensem nisso antes de rir da nossa breguice, do nosso surrealismo.

Quem escreveu esse texto

Amara Moira

Crítica literária, escreveu E se eu fosse puta (Hoo).

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.