Vinte Mil Léguas,

Um novo estoque de metáforas, pt. I

Veja as ideias que constituíam a base da biologia ocidental na época em que Darwin formulou sua teoria da evolução

14set2020

O novo episódio do Vinte Mil Léguas já está no ar! Ouça agora Um novo estoque de metáforas, pt. I, o terceiro programa da primeira temporada do podcast de ciências e literatura da Quatro Cinco Um, realizado em parceria com a Livraria Megafauna e com o apoio do Instituto Serrapilheira.  

Ilustração: Deborah Salles

Nos quase cinco anos navegando pelo mundo, Darwin formou a base teórica e imaginativa sobre a qual ele construiria seu maior legado: a teoria da origem das espécies por meio da seleção natural. Agora que temos uma ideia de quem era o jovem Charles Darwin, podemos colocá-lo em um contexto maior. Sabemos quais foram as experiências e reflexões definidoras a partir das quais Darwin revolucionou as ciências. Mas que ciência é essa? E que mundo é esse que foi transformado pela revolução de Darwin? Dê uma olhada abaixo para antecipar alguns dos assuntos abordados neste episódio, ou escute-o aqui e volte depois para saber mais sobre como as ciências eram pensadas desde a Grécia antiga até a Europa do século 18 e o que isso tem a ver com poesia e desenho industrial.

Aspas

“O melhor jeito de entender o dia de ontem é olhar para o dia de hoje.”
Charles Lyell

Pessoas

Erasmus Robert Darwin

Antes da genealogia das ciências, passaremos pela genealogia do cientista. Por vários motivos, Charles Darwin parecia destinado a deixar uma contribuição intelectual revolucionária. Seu avô paterno, Erasmus Darwin, foi médico, advogado, poeta, botânico e pensador da sociedade e da filosofia natural, além de designer pioneiro e voz ativa pelo fim da economia escravagista (duas coisas que Josiah Wedgwood, o outro avô de Charles, também foi).


Os lemas da família Darwin: “cave et aude” (“observa e escuta”) e “e conchis omnia” (“das conchas, tudo”) – o pessoal sabia das coisas. [Créditos: Angus Carroll]

O fantástico Dr. Darwin

Como médico, Erasmus foi brilhante, quiçá abençoado – ele ganhou fama após curar um rapaz desenganado. Sua cura, considerada milagrosa, baseou-se em interromper os tratamentos absurdos aos quais o paciente estava submetido. Convidado a ser o médico particular do rei George 3º, recusou. Sua enorme engenhosidade – como inventor, como naturalista ou como poeta – fez dele influência unânime nas grandes mentes das gerações seguintes, de Charles Darwin a Mary Shelley (Erasmus é convocado como autoridade científica no prefácio do Frankenstein). A figura de Erasmus Darwin parece, de fato, cristalizar alguns aspectos do imaginário inglês: o cavalheiro versátil e versado, capaz de solucionar mistérios aliando erudição e criatividade. Por isso, o bisavô da teoria da evolução inspirou obras diversas, de romances históricos a ficções científicas. Seus escritos, tanto sua poesia (“O amor das plantas”, cujo erotismo chocou seus contemporâneos) quanto sua filosofia natural (“Zoonomia, ou as leis da vida orgânica”), fizeram chegar a Charles Darwin ideias muito importantes – como a suspeita de que as espécies animais sofriam mudanças e tinham uma história comum. Erasmus faleceu em 1802, aos 70 anos, sete anos antes de o neto Charles nascer. O Darwin neto também se dedicou bastante à botânica ao final de sua vida. Mais sobre isso neste texto de Oliver Sacks para a Piauí.


Retrato de Erasmus Darwin, por Joseph Wright of Derby, datado da década de 1770. [Crédito: Birmingham Museum and Art Gallery]

Aristóteles

Mas por que falar em “filosofia natural” e não “ciências” ou “biologia”? A ideia de biologia como ciência e práticas codificadas só surgiu no século 19. Para entender a distinção, voltemos ao pai do “pensamento biológico”, o sábio de Estagira cuja cabeça sustenta até hoje o Ocidente (como canta Caetano Veloso). É no pensador grego do século 4 a.C., aluno de Platão e tutor de Alexandre, o Grande, que a biologia ocidental tem seu ancestral mais antigo. Aristóteles foi o primeiro a tentar realizar uma descrição e classificação da variedade a seu redor. Além dos seres vivos, ele também classificou e dividiu o próprio conhecimento humano e os saberes possíveis em múltiplas áreas. A base do pensamento biológico aristotélico era a ideia de que a identificação das partes anatômicas permitiria uma classificação dos seres vivos, um mapa do mundo dos organismos, como conta o entrevistado do episódio, Pedro Paulo Pimenta, na marca dos 17 minutos. Este pensamento só passou a ser mais desenvolvido e questionado no Ocidente no período moderno.


Imagens do Systema Naturae descrevendo estruturas vegetais e animais. [Crédito: Wellcome Collection]

Carlos Lineu

“Deus criou, Lineu organizou”, como o próprio resumiu. O sueco Karl Linnaeus, Carl Von Linné ou, simplesmente, Lineu, tomou para si a missão de nomear e classificar as variadas formas vivas da Terra. Começando em 1735, o botânico publicou, ao longo de décadas, o Systema Naturae, o “sistema da natureza”, no qual ele lista cerca de 10 mil espécies de seres vivos e as divide em três reinos, subdivididos em filos, classes, ordens, gêneros e espécies. Esta é a base da nossa atual taxonomia (classificação dos seres). Quando alguma espécie tem um L. no final, isso é porque Lineu foi o primeiro a descrevê-la. Além do próprio Aristóteles, Lineu inspirou-se em Teofrasto, filósofo também do século 4 a.C., discípulo de Aristóteles, considerado o primeiro botânico do Ocidente. A correspondência entre Lineu e o naturalista italiano Domenico Vandelli ajuda a destrinchar melhor suas fontes e sua ambição de “descobrir a lógica secreta da criação biológica de Deus”. Vandelli foi também muito importante para difundir as ideias de Lineu em Portugal e ajudou a formar naturalistas e articular as “viagens filosóficas” pioneiras em catalogar a fauna e a flora brasileiras.

Lugares

Inglaterra Vitoriana

A rainha Victoria nasceu em 1819 e reinou desde os dezoito anos até seu falecimento, aos 81, em 1901. Por isso o século 19 inglês é conhecido como o período vitoriano. É aí que os ideais modernos da industrialização e da divisão do trabalho são colocados a todo vapor – literalmente, já que a energia do vapor é uma das inovações que caracterizam o período. Sabe quem adorava máquinas a vapor? Os avós de Darwin, Josiah Wedgwood e Erasmus Darwin. Eles integravam a Sociedade Lunar de Birmingham, um clube informal de industrialistas e intelectuais que, entre outras coisas, ajudou a introduzir a tecnologia a vapor, marco da primeira revolução industrial na Inglaterra.

Ideias & invenções

A natureza ensina (a fazer piqueniques)

“Aproxime-se da luz que emana de todas as coisas, permita que a Natureza seja sua professora.” Para além de escrever poemas sobre a natureza, William Wordsworth, autor destes versos, e Samuel Taylor Coleridge, também citado no episódio, procuravam vivenciá-la de uma nova forma. Foi assim que os dois, junto de Dorothy Wordsworth, irmã do poeta, ajudaram a criar o piquenique como o conhecemos hoje, uma reunião ao ar livre, em que cada pessoa traz comida e bebida para compartilhar. Esse resgate da natureza está no cerne do movimento romântico e é uma resposta direta às mudanças no ritmo de vida impostas pela era industrial. Ocorre que a palavra e a prática do piquenique já existiam, mas eram feitos dentro de casa pelas classes aristocratas, uma chance de mostrar dotes culinários e artísticos, sempre com auxílio de grande elenco de criados. Foram os Wordsworth, aliando o amor pelas caminhadas à prática de parar em lugares pitorescos e alimentar-se, que deram a forma do piquenique como conhecemos e transformaram o ato em um passatempo da classe média, moldando toda a nossa cultura alimentar no caminho. Neste artigo, em inglês, é possível saber mais sobre esse “ato estético e ético” da tomada do piquenique. Não sabemos se Charles Darwin era fã de piqueniques, mas é bem documentado que ele gostava de conectar-se à natureza fazendo caminhadas por sua casa em Downe, trajeto que pode ser acompanhado neste simpático vídeo.


A casa de Charles Darwin em Downe, ao sudeste de Londres, conhecida como Down House. Gravura de J. R. Brown, do final do século 19. [Créditos: Wellcome Collection]

 

A poesia e as ciências

“A ciência”, escreveu Samuel Taylor Coleridge, “se faz necessariamente com a paixão da esperança – ela é, portanto, poética.” Ouvimos isso aos 4’40’’ do episódio. Coleridge, assim como Wordsworth, era poeta, e uns 40 anos mais velho que Darwin. As trocas entre o imaginário poético e as ciências foram um dos elementos que alavancariam os grandes avanços científicos ocorridos no período, como também ouvimos no episódio. Outro grande poeta, o alemão Goethe, também se dedicou a interligar esses saberes, tanto em um livro de botânica quanto em uma obra em que ele se inspira no poeta persa do século 14 Hafez para criar um diálogo poético entre Ocidente e Oriente.
 

Funcionalismo e finalidade

Um dos paradigmas aristotélicos que Darwin botou abaixo depois de milhares de anos foi o do funcionalismo. Para Aristóteles, a função dos órgãos vinha antes de sua forma. Ou seja, da necessidade de enxergar surgiria o olho. Na seleção natural de Darwin, no entanto, a função é absolutamente acidental. Modificações aleatórias ao longo de um tempo absurdamente longo acabaram fazendo surgir os órgãos como conhecemos hoje – mas eles poderiam ser totalmente diferentes. Ao longo dos próximos episódios do podcast, esse assunto será tratado mais em profundidade. Por enquanto, podemos pensar que esta conversa sobre a hierarquia entre forma e função é clássica em um campo que, como vimos, é mais próximo de Darwin do que imaginávamos, o desenho industrial. As formas dos objetos devem estar puramente associadas às suas funções, ou não necessariamente? Desde antes da Escola de Bauhaus até hoje, a questão rende, e seguirá rendendo, calorosa discussão.
 

Fixismo e evolucionismo

Outra novidade que se torna consenso a partir das ideias tardias de Charles Darwin (mas que muitos já haviam aventado, como Erasmus e sua intuição de que toda a vida vinha do mar) é a defesa do evolucionismo, ou seja, de que há uma história da transformação dos seres vivos. Antes disso, a ideia mais comumente aceita era a do fixismo, de que as formas da natureza eram fixas e atemporais, as espécies eram as mesmas desde sempre. Pensar em evolução é aceitar que as espécies mudam e se transformam ao longo do tempo. Como exatamente ocorrem essas mudanças é o que Darwin pesquisou toda a vida para tentar explicar. Hoje sabemos até que as baleias, na história de sua espécie, saíram da água para depois voltar, e que os cetáceos (baleias, botos e golfinhos) têm parentesco próximo com hipopótamos, e um parentesco mais antigo com camelos e porcos. Explica essa, Darwin!

Referências do episódio

  • Ed Simon, "How Erasmus Darwin's poetry prophesied evolutionary theory", no portal Aeon
  • Erasmus Darwin, The Temple of Nature.
  • Erasmus Darwin, Zoonomia.
  • Ernst Mayr, Isto é biologia: a ciência do mundo vivo. Companhia das Letras. 
  • Charles Darwin, A origem das espécies. Ubu.
  • Charles Darwin, The Life of Erasmus Darwin.
  • De Vandelli para Lineu, de Lineu para Vandelli: correspondência entre naturalistas. Dantes.
  • Michael Ruse, The Darwinian Revolution: Science Red in Tooth and Claw. The University of Chicago Press.
  • Pedro Paulo Pimenta, Darwin e a seleção natural: uma história filosófica. Edições 70/Discurso Editorial.
  • Richard Holmes, The Age of Wonder: How the Romantic Generation Discovered the Beauty and Terror of Science. Pantheon Books.
  • Stephen Jay Gould, Bully for Brontosaurus: Reflections in Natural History. WW Norton & Co.
  • Stephen Jay Gould, The Lying Stones of Marrakech: Penultimate Reflections in Natural History. Harvard University Press.
  • William Bynum, Uma breve história da ciência. L&PM.

vinte mil léguas recomenda

  • Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, Mary Shelley. Várias edições disponíveis.
  • Coleção Gabinete de Curiosidades. Dantes.
  • O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli. Dantes.

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Vinte Mil Léguas é uma produção da Associação Quatro Cinco Um em parceria com a Livraria Megafauna e com apoio do Instituto Serrapilheira.

Criação do podcast e edição dos roteiros: Fernanda Diamant
Pesquisa, roteiros e apresentação: Leda Cartum e Sofia Nestrovski
Edição e finalização de som: Nicholas Rabinovitch
Trilha sonora e execução da trilha: Fred Ferreira
Projeto gráfico e ilustrações: Deborah Salles
Produção executiva: Mariana Shiraiwa
Edição das newsletters: Gabriel Joppert
Revisão técnica: Reinaldo José Lopes