Repertório 451 MHz,

451 MHz #18: A morte (e a vida) segundo Manuel Bandeira

O podcast da Quatro Cinco Um recebe o crítico literário Davi Arrigucci Jr. para falar de morte, vida e poesia

15maio2020

Está no ar o décimo oitavo episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros! Duas vezes por mês, trazemos entrevistas, debates e informações sobre os livros mais legais publicados no Brasil. 

A pandemia de Covid-19 tem causado mortes em número recorde no Brasil, e essa dor se torna ainda maior diante das perdas da literatura brasileira para o vírus no mês de maio: Sérgio Sant'Anna e Aldir Blanc (além de Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza, de outras causas). Será que vai passar a ser normal conviver com tantas mortes?

Neste episódio procuramos saber o que a literatura brasileira pode nos ensinar sobre a morte: algumas da páginas mais impressionantes sobre esse assunto foram escritas por Manuel Bandeira (1886-1968), pernambucano que sofria de tuberculose, então uma doença fatal, desde a adolescência. Essa condição o obrigou a renunciar a seus planos e a levar uma "longa vida provisória" em seu quarto de doente e em sanatórios, onde acabou se fazendo poeta.

A sensação de morte iminente — que para Bandeira felizmente só viria "na hora certa", em 1968, aos 82 anos, depois de escrever uma obra central na língua portuguesa — forjou a poesia de Bandeira, que tematizou a morte em diversos poemas e textos em prosa. Para falar sobre essa linha de força na obra do poeta, convidamos para uma conversa o crítico literário Davi Arrigucci Jr., autor do importante estudo Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira

Ouça o episódio aqui e agora: 
 

A página Repertório 451 MHz reúne os links para o último episódio e para os livros citados, listas, além de imagens, sugestões de leitura e outras indicações para se aprofundar nos temas discutidos. 

O podcast 451 MHz pode ser ouvido gratuitamente no site da revista e também nos principais tocadores de podcasts. Ele é publicado na primeira e na terceira sexta-feira de cada mês. 

A apresentação é do editor Paulo Werneck e a direção é da jornalista Paula Scarpin, da Rádio Novelo, start-up de podcasts que produz o 451 MHz para a Associação Quatro Cinco Um. Para contribuir com a realização do podcast, convidamos você a fazer uma assinatura da Quatro Cinco Um, a revista dos livros.

Bloco 1 (4:02): “Bandeira percebeu que a poesia se faz com palavras, não com ideias.”


O escritor Manuel Bandeira (1886-1968)

Em Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira (Companhia das Letras), Davi Arrigucci Junior mostra como Bandeira adotou um estilo humilde, que combina de forma muito original o erotismo e a meditação filosófica sobre a morte. “A naturalização é uma forma de lidar com a morte e trazê-la para mais perto. Nisso, a poesia erótica foi um caminho importantíssimo. A libertinagem, o erotismo, que é uma pequena morte, é um modo de se familiarizar com a destruição”, diz ele.

 

Arrigucci Jr. brinca que Bandeira, ao refugiar-se na Suíça entre 1913 e 1914 procurando “bons ares” para curar sua doença, foi uma espécie de personagem de A montanha mágica (Companhia das Letras), de Thomas Mann — o livro, lançado em 1924, tem como protagonista um estudante alemão que busca tratamento para a tuberculose nos Alpes suíços. Na estação de curas de Clavadel, em Davos, Bandeira teve encontros com intelectuais europeus como o poeta Paul Éluard que foram decisivos para que se tornasse poeta e publicasse seu primeiro livro, A cinza das horas, em 1917.

“Essa circunstância determinou muito de sua obra poética. O poeta lida com os fatos como uma matéria, mas a transfigura, e Bandeira se deu conta de que era um poeta de circunstâncias e desabafos. Ele foi um rapaz recluso, que precisava enfrentar a ameaça da morte cotidiana, e construiu sua obra a partir desse contexto e, em grande parte, a partir de um quarto de doente, de isolamento — parecido com aqueles em que estamos vivendo agora.” 


Ele conta que nos primeiros livros de Bandeira (A cinza das horas, O carnaval e O ritmo dissoluto, atualmente publicados pela Global), a morte, que tem presença avassaladora, se traduz na forma de tristeza, desalento e desencanto. Já a partir de 1930 (Libertinagem, A estrela da manhã, A lira dos cinquent'anos), a questão da finitude da existência aparece transfigurada de forma mais profunda e entranhada. “Ele transforma a poesia em um meio de meditar sobre a morte, sem nada de apelativo, sem melancolia barata nem sensacionalismo.”

Alice Sant’Anna lê “Profundamente”, de Manuel Bandeira (17:37)

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

“Manuel Bandeira foi um exímio conhecedor da língua, e percebeu desde muito cedo que a poesia se faz com palavras, não com ideias. Aqui, ele usa ‘profundamente’ de forma admirável, e [a palavra] vai se recarregando semanticamente a cada aparição”, diz Arrigucci Jr. Ele observa também que a pergunta “Onde estão todos eles?”, que abre o vazio da morte, é recorrente na poesia, chamada em latim de ubi sunt — uma reflexão sobre a morte e a transitoriedade da vida que causa uma efeito de nostalgia.

Bloco 2 (24:55): “Bandeira descobriu como falar da morte como um fato cotidiano.”

Alice Sant’Anna lê “Momento num café”, de Manuel Bandeira (26:25)

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

No segundo bloco, Arrigucci Jr. fala sobre a qualidade humilde do poeta. ”Este é um poema duro e extremo do Manuel Bandeira, mas ele descobriu que era possível falar da morte não mais como escândalo, mas como um fato do cotidiano. Algo perto do chão. Para isso, ele inventou essa forma despojada de um estilo humilde”, diz, explicando que a palavra humiles, em latim, vem de humus, que quer dizer “chão”.

Alice Sant’Anna lê “A morte absoluta”, de Manuel Bandeira (28:43)

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
a exangue máscara de cera,
cercada de flores,
que apodrecerão – felizes! – num dia,
banhada de lágrimas
nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
a lembrança de uma sombra
em nenhum coração, em nenhum pensamento,
em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
que um dia ao lerem o teu nome num papel
perguntem: “Quem foi?…”

Morrer mais completamente ainda,
– sem deixar sequer esse nome.

Alice Sant’Anna lê “Preparação para a morte”, de Manuel Bandeira (31:21)

A vida é um milagre.
Cada flor,
com sua forma, sua cor, seu aroma,
cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
com sua plumagem, seu voo, seu canto,
cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
o espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
o tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Para Davi Arrigucci Jr., os poemas acima mostram um tom reflexivo e nada piegas sobre a finitude e, ao mesmo tempo, um modo de entender a morte como parte da ordem natural das coisas. “A longa obra meditativa banderiana é um modo de aprender a morrer”, diz o crítico literário.

Alice Sant’Anna lê trecho de “O enterro do sinhô”, de Manuel Bandeira (37:04)

(…) Não faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.

Seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários… A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas… Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema d'a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.

Por fim, Arrigucci Jr. indica o livro de cartas trocadas entre Manuel Bandeira e Mario de Andrade (Correspondência: Mario de Andrade e Manuel Bandeira, Edusp), que considera um dos maiores livros da cultura brasileira. “É um livro obrigatório para todo moço e moça que queira aprender sobre literatura, sobre o Brasil, sobre o que nós somos.” 

Parênteses

Companhia das Letras (0:23)

Este episódio tem o apoio da editora Companhia das Letras. Dizem que o dinheiro não muda ninguém, apenas desmascara; e é num mundo sem máscaras que as predileções humanas ficam mais claras. Esta é a síntese de um romance em que dois narradores privilegiados se alternam para contar cada um a sua história. Com personagens que não buscam a simpatia do leitor, pelo contrário. Mas seu encanto está justamente no que neles há de corrompido. É necessário considerar as nuances da escrita – a meio caminho entre a paródia e a crítica, que procura retratar o Brasil através da degradação de sua elite econômica. As sobras de ontem é a obra de estreia de Marcelo Vicintin e é a nossa dica de lançamento do mês pela Companhia das Letras.
 

Acesse www.companhiadasletras.com.br. Assinantes da Quatro Cinco Um têm direito a 20% de desconto nas compras do site.

Editora FGV (22:37)

Organizado por Anna Carla Almeida Mariz e Thayron Rodrigues Rangel, o livro Arquivologia: Temas Centrais em uma Abordagem Introdutória expõe os temas centrais da ciência da arquivologia em uma linguagem acessível, visando a um público de iniciantes e também de curiosos que queiram se informar sobre o assunto. Trata-se de um contato inicial para apresentar temas importantes aos ingressantes dos cursos de graduação, ou ainda a leigos que almejam conhecer o campo arquivístico ou nele tenham interesses ou afinidades. A coletânea é escrita por professores e profissionais especialistas que desenvolvem pesquisas sobre os temas elencados e apresentam suas perspectivas e olhares sobre os respectivos objetos, sempre atendendo a esta característica: uma abordagem para leigos. O ebook Arquivologia: Temas Centrais em uma Abordagem Introdutória está disponível no site da Editora FGV, além das lojas da Amazon, Apple e Google Play. A versão impressa será lançada após esse período turbulento da quarentena .

451 MHz — Ouvinte entusiasta (23:47)

Se você gosta de ouvir o nosso podcast, a gente criou para você um plano especial de assinatura, o plano Ouvinte entusiasta. Isso mesmo. Igual ao Assinante Entusiasta da nossa edição impressa, você pode passar a nos ajudar a realizar o 451 MHz com R$ 20 por mês. Basta fazer uma assinatura — o plano Ouvinte entusiasta está aqui no nosso site — e esses R$ 20 são cobrados todo mês no seu cartão de crédito. Você pode entrar agora e sair quando você quiser. Com esse valor, você nos ajuda e produzir o programa. Em troca, a gente dá acesso ao nosso site e a todos os conteúdos publicados pela Quatro Cinco Um desde a nossa primeira edição. Você também ganha o seu nome no expediente da revista e também aqui no podcast — isso mesmo, a gente vai ler aqui no ar o nome das pessoas que estão nos ajudando a manter o programa em pé. Vai lá e faz a sua assinatura do Ouvinte entusiasta!

Os ouvintes entusiastas desta edição são:

Patrícia Carneiro de Brito
Sandrine Ghys
Julia Guarilha
Mariah Guedes
Leila Lima
Gabriel Navarro Colaço
Luísa Plastino
Debora Sader
Gustavo Sénéchal
Tatiana Vargas
Luiza Martins Werneck

Ficha técnica:
O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo para a Quatro Cinco Um
Apresentação: Paulo Werneck
Direção: Paula Scarpin
Edição: Paula Scarpin e Vitor Hugo Brandalise
Produção: Vitor Hugo Brandalise
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Trilha adicional: Mari Romano
Finalização e mixagem: João Jabace
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Kellen Moraes
Gravado com apoio técnico da Som de Cena (SP).
Para falar com a equipe: [email protected]