Repertório 451 MHz,

451 MHz #17: A poeta e o tradutor

No podcast da Quatro Cinco Um, a poeta Elizabeth Bishop, homenageada da Flip 2020, é apresentada por seu tradutor, Paulo Henriques Britto

01maio2020

Está no ar o décimo sétimo episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros! Duas vezes por mês, trazemos entrevistas, debates e informações sobre os livros mais legais publicados no Brasil. 

Nesta edição, fazemos uma porta de entrada para o universo de Elizabeth Bishop , homenageada da Flip 2020. O apresentador Paulo Werneck recebe o tradutor da norte-americana, o poeta e professor Paulo Henriques Britto, que fala da vida e da obra da escritora, da relação dela com o Brasil, dos desafios de traduzir poesia e das opiniões políticas dela, que apoiou o golpe de 64. A poeta Angélica Freitas e a tradutora Flora Thomson-DeVeaux fazem participações especiais.

Ouça o episódio aqui e agora: 
 

A página Repertório 451 MHz reúne os links para o último episódio e para os livros citados, listas, além de imagens, sugestões de leitura e outras indicações para se aprofundar nos temas discutidos. 

O podcast 451 MHz pode ser ouvido gratuitamente no site da revista e também nos principais tocadores de podcasts. Ele é publicado na primeira e na terceira sexta-feira de cada mês. 

A apresentação é do editor Paulo Werneck e a direção é da jornalista Paula Scarpin, da Rádio Novelo, start-up de podcasts que produz o 451 MHz para a Associação Quatro Cinco Um. Para contribuir com a realização do podcast, convidamos você a fazer uma assinatura da Quatro Cinco Um, a revista dos livros.

Bloco 1 (5:25)


O tradutor, poeta e professor Paulo Henriques Britto [Renato Parada]

O apresentador Paulo Werneck recebe um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Elizabeth Bishop: o tradutor, poeta e professor carioca Paulo Henriques Britto, responsável por quase todas as traduções dela publicadas entre nós. A norte-americana que viveu mais de quinze anos no Brasil é a autora escolhida como homeneageada da Flip 2020, que tradicionalmente acontece em julho, mas, neste ano, foi adiada para novembro por conta da pandemia. A conversa foi gravada em estúdio, em janeiro, antes de o coronavírus chegar ao Brasil.

Após o anúncio da homenagem — a primeira que o festival dedica a uma autora estrangeira —, uma enxurrada de críticas tomou conta das redes sociais, principalmente em razão do apoio que a poeta manifestou, em carta a um amigo, ao Golpe de 1964. Sem despertar maior celeuma, a carta havia sido publicada em 2008, pela revista Piauí, numa seleção feita pelo jornalista Otavio Frias Filho a partir da recente edição da correspondência de Bishop com Lowell. 

A posição política de Bishop nunca foi desconhecida de seus leitores — afinal de contas, ela era muito amiga de Carlos Lacerda, um dos conspiradores da deposição de João Goulart pelos militares — e na verdade não tem relevância em sua obra, que é pouco politizada, ao menos no sentido tradicional. Em outras esferas da política, como a do comportamento, Bishop não foi conservadora, e hoje vem ganhando tanto prestígio acadêmico e editorial no mainstream literário americano quanto estima entre leitoras e leitores por ter vivido e tematizado em sua poesia a homossexualidade em plena caça à bruxas macarthista. 

Mas, uma vez entronizada na homenagem da Flip, o barulho nas redes sociais foi grande. E a obra poética foi deixada de lado na discussão. Sem fugir da política, este episódio do 451 MHz procura abrir algumas portas de entrada na poesia de Bishop, tendo como guia o seu maior divulgador no Brasil.

Ganhador do prêmio Oceanos e tradutor de escritores de língua inglesa como Philip Roth, William Faulkner e Charles Dickens, Britto afirma que Bishop é a autora a quem mais dedicou tempo em sua carreira de tradutor, ao lado de Wallace Stevens. “Sua obra poética tem no máximo cem poemas — um contraste com o tipo de autor que produz, produz, produz, e o que fica a vida inteira esmerando uma obra muito pequena. Mas não há um poema dela que seja mais ou menos”, conta ele. 

Se a obra poética é enxuta, a correspondência, que vem ganhando importância conforme vai sendo publicada e estudada, ocupa centenas e centenas de páginas. Paulo Henriques Britto conta que foi na leitura das cartas que nasceu o seu fascínio pela poeta. É comum que a correspondência de escritores seja de interesse restrito a especialistas em crítica e história da literatura. No caso de Bishop, as cartas se deixam ler com o prazer de crônicas, e no conjunto formam uma narrativa romanesca. 

A prosa saborosa, afiada nas descrições de situações do cotidiano e nas observações espirituosas, se impõe como uma obra literária autônoma, de importância análoga à das cartas de Mario de Andrade, segundo Paulo Henriques Britto. Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop foi lançado pela Companhia das Letras em 1995, com tradução de Britto, que começava uma longa relação com a obra da americana, publicando sucessivas antologias que ele mesmo organizou: O iceberg imaginário e Poemas escolhidos.

Para o leitor brasileiro, além do sabor literário as cartas de Bishop — assim como muitos de seus poemas, reunidos em Poemas do Brasil — trazem a graça de ver o país descrito com humor e inteligência, principalmente o dia a dia, os tipos humanos e certos traços de comportamento.

Num nível mais profundo, entretanto, o conhecimento dela sobre o país, no entanto, era cheio de lacunas e mal-entendidos. Segundo Britto, ela "tem toda a consciência" de sua ignorância a respeito do Brasil. No final da vida, aos sessenta anos, ao se ver obrigada a trabalhar pela primeira vez na vida, quando acaba o dinheiro deixado por seu pai, Bishop organiza uma antologia de poesia brasileira a ser lançada em inglês.

“Tem uma confissão que ela faz, na qual diz: ‘Pois é, vê que ironia, eu que, na verdade, não entendo grande coisa do Brasil, vou vou ficar marcada como uma entendida em Brasil aqui nos Estados Unidos”, conta o tradutor. “O conhecimento que ela tinha do Brasil é muito superficial. Ela faz generalizações terríveis sobre o Brasil, conhece muito mal a história do Brasil. Mas como ela é poeta, ela tem observações muito interessantes, sacações ótimas, no nível da percepção das relações entre as classes sociais, por exemplo.”

Ao final do primeiro bloco, Britto fala sobre as dificuldades enfrentadas pelo tradutor de poesia — e também as liberdades que pode se permitir. Ele conta por que decidiu incluir em suas traduções de Bishop expressões que abrasileiram os poemas, como “no tempo de Villegaignon” e até um gaiato “a-lá-lá-ô” num poema irônico e amargo sobre o Carnaval do Rio. “É o tipo de coisa que ela poderia ter feito”, argumenta. 

Essas ousadias do tradutor podem ser apreciadas nas duas participações especiais deste episódio. O poema “Cadela rosada”, um dos mais famosos de Bishop, foi lido no podcast pela poeta Angélica Freitas, uma de suas grandes leitoras-herdeiras no Brasil, e, em inglês, pela tradutora e ensaísta Flora Thomson-DeVeaux.


A poeta Angélica Freitas [Divulgação]

“Cadela rosada”, por Angélica Freitas (18:57)

Tradução: Paulo Henriques Britto

[Rio de Janeiro]

Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.

Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pêlo, pele tão avermelhada…
Quem a vê até troca de calçada.

Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia — é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?

(Tetas cheias de leite.) Em que favela
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?

Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.

E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.

Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?

A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando bóias salva-vidas.

Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério, o jeito

mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia

pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a quarta-feira, é Carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!

Dizem que o Carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos…
Dizem a mesma bobagem todo ano.

O Carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror…
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô…!


A tradutora norte-americana Flora Thomson-DeVeaux [Paula Scarpin]

“Pink dog”, por Flora Thomson-DeVeaux (22:13)

The sun is blazing and the sky is blue.
Umbrellas clothe the beach in every hue.
Naked, you trot across the avenue.
 
Oh, never have I seen a dog so bare!
Naked and pink, without a single hair…
Startled, the passersby draw back and stare.
 
Of course they’re mortally afraid of rabies.
You are not mad; you have a case of scabies
but look intelligent. Where are your babies?
 
(A nursing mother, by those hanging teats.)
In what slum have you hidden them, poor bitch,
while you go begging, living by your wits?
 
Didn’t you know? It’s been in all the papers,
to solve this problem, how they deal with beggars?
They take and throw them in the tidal rivers.
 
Yes, idiots, paralytics, parasites
go bobbing int the ebbing sewage, nights
out in the suburbs, where there are no lights.
 
If they do this to anyone who begs,
drugged, drunk, or sober, with or without legs,
what would they do to sick, four-legged dogs?
 
In the cafés and on the sidewalk corners
the joke is going round that all the beggars
who can afford them now wear life preservers.
 
In your condition you would not be able
even to float, much less to dog-paddle.
Now look, the practical, the sensible
 
solution is to wear a
fantasía.
Tonight you simply can’t afford to be a–
n eyesore… But no one will ever see a
 
dog in
máscara this time of year.
Ash Wednesday’ll come but Carnival is here.
What sambas can you dance? What will you wear?
 
They say that Carnival’s degenerating
—radios, Americans, or something,
have ruined it completely. They’re just talking.
 
Carnival is always wonderful!
A depilated dog would not look well.
Dress up! Dress up and dance at Carnival!

Bloco 2 (31:05)

No segundo bloco, Werneck e Britto conversam sobre as cartas da poeta — “Ela talvez seja a maior epistológrafa da literatura americana” — e sobre a carreira de tradutor de Britto, que nos tempos de maior atividade chegava a traduzir cinco livros por ano. Ele conta na entrevista alguns macetes e bastidores do métier, como a possibilidade de trocar correspondência com os autores que traduz para resolver dúvidas. Foi assim que trocou cartas com Thomas Pynchon e John Updike, dois que o “ajudaram muito”.

Britto se vale de uma boutade de Molière para explicar como começou a traduzir — primeiro por amor, depois para os amigos, depois por dinheiro. Quebrando galhos para amigos, traduzindo letras de canções de Caetano para os colegas de high school nos Estados Unidos — assim se iniciou um dos mais tarimbados tradutores brasileiros, que consolidou os anos de estrada no volume A tradução literária (Civilização Brasileira).

Paralelamente, ele encontrou tempo para escrever um livro de contos, dezenas de ensaios e artigos acadêmicos e algumas coletâneas de poemas de sua autoria, entre os quais os versos premiados de Macau e o recente Nenhum mistério, que no título ecoa os versos do mais famoso poema de Elizabeth Bishop, “Uma arte”: “A arte de perder não é nenhum mistério”.

“O poema se torna sobre as perdas todas da vida”, diz Britto na entrevista. “Um poema sobre a perda em geral, sobre a vida. É um poema magnífico.” A poeta Angélica Freitas também leu no podcast o poema “Uma arte”.

“Uma arte”, por Angélica Freitas (38:12)

Tradução: Paulo Henriques Britto

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Ao final do epsiódio, Britto também comentou as posições políticas expostas por Bishop em suas cartas sobre o golpe de 64, que ela qualificou numa carta a Robert Lowell como “uma revolução rápida e bonita”.

“Os amigos dela, que são todos democratas, ficam horrorizados quando veem ela defendendo uma ditadura”, diz Britto. “Mas ela não está falando isso de má-fé, não. Não é fake news. É ignorância dela. Ela ouviu alguém dizer isso e repetiu. Ela não tem informação nenhuma sobre o Brasil. Ela conhece muito pouco, na verdade, sobre o Brasil.”

Parênteses

Companhia das Letras (0:25)

Este episódio tem o apoio da Companhia das Letras, que acaba de lançar o romance "Corpos Secos", de Marcelo Ferroni, Luisa Geisler, Natália Borges Polesso e Samir Machado de Machado, pelo selo Alfaguara. 
 
Escrito em conjunto pelos quatro autores, "Corpos Secos" acompanha a história dos poucos sobreviventes de uma doença fatal que transformou o Brasil numa terra pós-apocalíptica: sem governo, sem leis e sem esperanças. 
 
Tudo indica que a doença surgiu após o uso de agrotóxicos sem os testes necessários. Os primeiros casos apareceram no Mato Grosso do Sul, e se espalharam. São os chamados "corpos secos": espectros humanos que não têm mais atividade cerebral. Mas seus corpos ainda funcionam e estão em busca de sangue.
 
O livro acompanha as histórias de sobreviventes: um jovem imune à doença precisa ser protegido; uma dona de casa vive sozinha numa fazenda e toma coragem para sair do isolamento; uma criança vê a mãe fazer de tudo pra salvar a família; uma engenheira de alimentos percebe que seus estudos talvez não sejam suficientes para explicar o terror. Eles narram suas jornadas em busca do último refúgio no sul do país. 
 
"Corpos Secos", lançado pela Companhia das Letras, não é só um thriller, nem um romance-catástrofe. É uma narrativa sobre os limites da maldade humana, e as chances de redenção no meio do caos.
 
Você pode adquirir diretamente pelo site www.companhiadasletras.com.br. Assinantes da Quatro Cinco Um têm direito a 20% de desconto nas compras do site.

451 MHz — Ouvinte entusiasta (20:50)

Se você gosta de ouvir o nosso podcast, a gente criou para você um plano especial de assinatura, o plano Ouvinte entusiasta. Isso mesmo. Igual ao Assinante Entusiasta da nossa edição impressa, você pode passar a nos ajudar a realizar o 451 MHz com R$ 20 por mês. Basta fazer uma assinatura — o plano Ouvinte entusiasta está aqui no nosso site — e esses R$ 20 são cobrados todo mês no seu cartão de crédito. Você pode entrar agora e sair quando você quiser. Com esse valor, você nos ajuda e produzir o programa. Em troca, a gente dá acesso ao nosso site e a todos os conteúdos publicados pela Quatro Cinco Um desde a nossa primeira edição. Você também ganha o seu nome no expediente da revista e também aqui no podcast — isso mesmo, a gente vai ler aqui no ar o nome das pessoas que estão nos ajudando a manter o programa em pé. Vai lá e faz a sua assinatura do Ouvinte entusiasta!

Os ouvintes entusiastas desta edição são:

Patrícia Carneiro de Brito
Sandrine Ghys
Julia Guarilha
Leila Lima
Luísa Plastino
Debora Sader
Gustavo Sénéchal
Tatiana Vargas
Luiza Martins Werneck

Ficha técnica:
O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo para a Quatro Cinco Um
Apresentação: Paulo Werneck
Direção: Paula Scarpin
Edição: Paula Scarpin e Vitor Hugo Brandalise
Produção: Aline Scudeller e Vitor Hugo Brandalise
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: João Jabace
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Kellen Moraes
Gravado no estúdio Rastro (RJ) e com apoio técnico da Som de Cena (SP).
Para falar com a equipe: [email protected]