Literatura israelense,

De volta para o futuro

Yuval Noah Harari, que lança seu primeiro livro para o público jovem, fala sobre metaverso, TikTok e o privilégio de não usar smartphone

27set2022

Frequentemente tido como futurologista, tamanha a nitidez com que descreve a evolução humana (seu Sapiens já vendeu 18 milhões de cópias ao redor do mundo), Yuval Noah Harari nega previsões e visões deterministas da História e defende que ela é moldada por decisões humanas, portanto imprevisível. É essa a principal mensagem de sua primeira incursão literária destinada ao público infantil, a série Implacáveis — carinhosamente apelidada por seu marido de “Harari Potter”.

No primeiro de quatro volumes a serem lançados ao longo dos próximos anos, ele aborda os porquês de ter sido o humano, e não outro animal, a conquistar o mundo. Afastando-se da linguagem enfadonha e tediosa habitual dos livros de História, Harari cria uma narrativa que tem como inspiração o que ele próprio gostaria de ter lido aos dez anos de idade.

Que fato histórico mais o impactou durante a infância?
Posso citar dois momentos. Tomei consciência pela primeira vez de que existia algo que chamamos de História aos seis anos. O primeiro evento histórico de que me lembro foi a Guerra das Malvinas. Eu estava em Israel, então aquilo estava acontecendo do outro lado do planeta, mas tenho uma memória de infância muito nítida de estar sentado em frente à televisão assistindo ao incidente do naufrágio do Sheffield, o navio de guerra britânico. Assisti às imagens do naufrágio e também a uma entrevista com um soldado britânico divulgada após a sua morte. Disseram: “Esta é uma das pessoas que morreram no navio”. Como criança, eu não conseguia entender aquilo. “Se ele está morto, como é possível que eu esteja vendo esta entrevista? Ele é um fantasma? O que está acontecendo aqui?”

O segundo grande acontecimento que ficou marcado em mim foi a queda do Muro de Berlim, em 1989, quando eu tinha treze anos. Lembro-me de ouvir sobre isso no rádio e pensar: “Vou me lembrar deste momento pelo resto da vida”. E é verdade. Eu ainda consigo visualizar o momento. Eu estava escovando os dentes, lembro-me do armário azul à minha frente. Para as pessoas da minha geração, aquele foi um evento histórico definidor de nossa vida. Gorbatchov acabou de falecer e ele é um de meus heróis históricos. O fim da Guerra Fria foi o evento histórico definidor da minha vida.

É muito importante que as crianças percebam que a história não é determinista. Ela é moldada por decisões humanas

Implacáveis mostra aos jovens que o mundo é como é porque as pessoas o fizeram assim — o que também significa que as pessoas podem mudá-lo. Você acredita que as próximas gerações terão um impacto mais positivo no planeta — você é otimista nesse sentido?
Não sei. As pessoas muito frequentemente me pedem que preveja o futuro, perguntam se sou otimista ou pessimista. Eu não sei por quê; no fim das contas, tudo depende de decisões humanas. Essa é a mensagem principal do livro também. Que a História não é determinista, sempre temos escolhas, temos a possibilidade de agir. O mundo é do jeito que é porque as pessoas fizeram escolhas no passado. Gorbatchov fez uma escolha, Putin fez uma escolha diferente, com sua invasão da Ucrânia… são escolhas. É muito importante que as crianças percebam que a História é moldada por decisões humanas. É claro que com dez anos você não tem muita influência no mundo, mas tem alguma influência. E, à medida que envelhece, terá mais, será capaz de mudar o mundo e, com sorte, tomar boas decisões.

Como você tentou tornar este livro atraente para as crianças?
Trabalhei com uma equipe de especialistas em livros infantis porque era a primeira vez que escrevia para esse público. O principal objetivo foi tornar o texto acessível, mas sem evitar perguntas difíceis sobre a História. Sem simplificar demais, sem fugir de episódios difíceis e às vezes sombrios da História. E fazendo com que fosse relevante para a vida das crianças. As pessoas pensam que a História é uma lista de nomes e reis e batalhas que aconteceram há milhares de anos. Isso é enfadonho para as crianças. “O que isso tem a ver com a minha vida?”, elas se perguntam.

Ouvi falar em Adão e Eva muito antes de ouvir falar em evolução humana, neandertais e descobertas arqueológicas

A chave é entender que esses eventos ainda moldam a vida delas hoje. O que elas comem, que tipo de família têm, se vão à escola. Nem sempre houve escolas, o porquê de existirem hoje é resultado de determinados eventos históricos. Se falamos no livro sobre política, ditaduras e democracias, começamos com algo sobre a vida das crianças, como por exemplo a maneira como lidam com valentões. Toda criança lida com essa questão, e esse é um bom ponto para começar a discussão sobre política, sobre quem faz as regras e o que acontece se alguém as quebra. Se há uma pessoa dominadora que quer impor sua vontade a todos, o que você faz?

É mais fácil explicar as coisas para crianças ou para adultos?
De certa forma para as crianças, porque elas não necessariamente acreditam em todas as ficções e mitologias em que os adultos acreditam. À medida que crescemos, somos alimentados com todo tipo de história sobre economia, religião, nação. Passamos a acreditar nelas e se torna muito difícil ver a História com um olhar imparcial. As crianças estão mais abertas a ter um olhar novo. Então, por essa perspectiva, é mais fácil explicar o que é dinheiro ou o que são deuses para crianças do que para adultos.

Por outro lado, quando você escreve para adultos, se você não tem certeza de algo, você sempre pode encobrir isso escrevendo frases muito longas e palavras difíceis. Aí as pessoas pensam: “É muito complicado para mim, eu não compreendo”. Mas com crianças isso não funciona. Você precisa escrever de maneira simples, o que o força a pensar mais. Você precisa realmente saber o que está dizendo para dizê-lo da maneira mais simples possível.

Você disse recentemente que, se tivesse lido este livro aos dez anos, teria poupado anos acreditando em todo tipo de bobagem sobre o mundo. A que tipo de bobagem se refere?
Todas essas histórias sobre deuses, nações, dinheiro. Aquilo que as pessoas acham que é a verdade, mas, na realidade, são apenas histórias que alguém inventou centenas ou milhares de anos atrás. De certo modo, ainda estamos todos presos dentro dos sonhos e fantasias de pessoas mortas. Eu cresci em Israel, onde estudamos a Bíblia como sendo História. Ouvi falar em Adão e Eva e do jardim do Éden muito antes de ouvir falar em evolução humana, neandertais e descobertas arqueológicas como a arte rupestre de Lascaux ou de Altamira. Demorei muito tempo para fazer a mudança de chave: “Espera aí, isso é apenas mitologia que alguém inventou e isso são fatos e evidências reais da História humana”.

Você disse também que, em termos de educação infantil, a melhor aposta seria focar na inteligência emocional. Por que ela é tão importante?
Porque estamos entrando em uma era ainda mais agitada e volátil da História humana. Ninguém tem ideia, por exemplo, de como o mercado de trabalho ou a economia estarão daqui a duas ou três décadas. Portanto, não sabemos nem que tipo de habilidades ensinar às crianças hoje para que tenham um bom emprego no futuro. Elas provavelmente terão que aprender e reaprender habilidades ao longo de toda a vida por causa do ritmo acelerado de mudanças no mercado de trabalho, por causa de automação e de inteligência artificial. A maior dificuldade ao aprender continuamente novas habilidades é emocional, psicológica, mental. É extremamente estressante.

Até agora, aprendemos as habilidades básicas da vida quando jovens e, por mais que tenhamos continuado a aprender coisas à medida que envelhecemos, essas habilidades básicas continuaram as mesmas. Mas isso terá que mudar. Em vinte ou trinta anos, talvez muito de nossa vida, incluindo a profissional, ocorra no metaverso, nas realidades virtuais. O que as pessoas não costumam entender é que lá as leis da física são diferentes. Você vê as coisas e se move de maneira diferente. Então imagine alguém que tem cinquenta anos e precisa reaprender não uma língua ou algo do tipo, mas a enxergar, a andar. Como você faz isso aos cinquenta anos? E, se não fizer, corre o risco de ficar para trás, de se tornar irrelevante. Então, para se adaptar, você precisa de muita resiliência e inteligência emocional. É por isso que enfatizo isso, e acho também que aprender História tem um papel importante. A História não é o estudo do passado, é o estudo das mudanças. Quando você aprende História, aprende como as coisas mudam e continuam mudando, e isso o ajuda a adotar uma visão de mundo muito mais fluente.

Você tem um smartphone?
Eu tenho apenas um smartphone de emergência. Uso quando viajo, se preciso encontrar alguém no aeroporto, esse tipo de situação. Em caso de emergência ele está lá, mas geralmente fica trancado em uma gaveta.

Como acha que o excesso de exposição às telas impacta as crianças?
Esse é um dos maiores experimentos da História humana. Ninguém sabe quais serão as consequências em dez, vinte ou trinta anos. As consequências psicológicas, as consequências sociais. É um experimento enorme e assustador, mas não acho que seja de todo ruim. Há muitas coisas boas nisso também. Quando eu era criança, todos reclamavam da televisão. De haver crianças e adultos sentados em frente a uma tela sem fazer nada por horas. Agora, com as redes sociais, não é assim. Todo mundo está se tornando um artista, um criador. Não se trata apenas de sentar e assistir, mas de criar conteúdos, o que é incrível.

A exposição excessiva às telas é um dos maiores experimentos da história humana. Ninguém sabe quais serão as consequências

Não acho que devemos ter essa sensação histérica de que tudo é ruim. O segredo é ter equilíbrio, e é por isso que eu recomendo a todos que tirem um tempo para se desconectar. Eu sei que não ter um smartphone é um privilégio muito raro. A maioria das pessoas, mesmo que queira, não consegue, porque é forçada a ter um, pelo trabalho, pela escola ou pelo que for. Mas ainda assim é importante se desconectar de vez em quando e dar a si mesmo tempo para desintoxicar a mente do fluxo constante de informações.

Você acha que as próximas gerações estarão mais preparadas para lidar com o problema das fake news?
As fake news sempre foram um problema. Elas não são uma criação das mídias sociais ou das novas tecnologias. Tivemos notícias falsas muito piores há um século. Se você pensar na propaganda nazista e na soviética, aquilo foi muito pior do que qualquer coisa que vemos hoje. Se você voltar mil anos, não havia Facebook, Twitter ou TikTok, mas havia notícias falsas sobre bruxas. As pessoas de algum vilarejo espalhavam uma notícia falsa de que uma velha na periferia da vila era uma bruxa e que alguém a viu voando em uma vassoura à noite. Não havia mídias sociais, mas, em poucas horas, surgiria uma multidão de aldeões com forquilhas para queimar aquela pobre senhora. Toda geração tem problemas com diferenciar a verdade de todo tipo de ficção, mentira e propaganda. Esse é um dos aspectos mais difíceis, não sobre viver no século 21, mas sobre ser um animal social.

O que as emoções dos animais revelam sobre nós

Há alguma parte do livro que você achou particularmente difícil de adaptar para uma linguagem acessível para os jovens?
Uma das seções do livro explica o que são as corporações. É difícil de explicar até para adultos. Tive dificuldades com esse tema, mas insisti nele pelo seguinte motivo: há todos esses livros infantis sobre animais, sobre elefantes, girafas e baleias — de que eu gosto muito —, mas quantas crianças têm contato com um elefante todos os dias? Muito poucas. No entanto, quase toda criança tem contato diário com diversas corporações. O Google é uma corporação. O TikTok. O Mc Donald’s. É importante que as crianças conheçam os elefantes, mas também que entendam quem são esses estranhos gigantes que encontram todos os dias e que moldam sua vida. Foi muito difícil, mas fizemos o nosso melhor. Espero que crianças de dez anos que lerem o livro entendam não apenas o que são as corporações, mas também quanto elas são importantes no mundo.

Como devemos estimular a leitura entre as crianças?
Escrevendo bons livros. Não podemos forçar as crianças a ler com fórmulas do tipo: “Você tem que ler uma hora todos os dias”. Isso não funciona. Se houver muitos livros bons no mundo, se continuarmos escrevendo bons livros e se os tornarmos acessíveis, eles farão o trabalho sozinhos.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).