Fichamento,
Edimilson de Almeida Pereira
O poeta e pesquisador de culturas populares mineiro fragmenta a narrativa nos romances O Ausente e Um corpo à deriva
01nov2020Um dos principais poetas brasileiros contemporâneos e pesquisador de culturas populares, Edimilson de Almeida Pereira publica os romances O Ausente (Relicário), sobre um homem nascido para curar que procura fugir desse ofício, e Um corpo à deriva (Edições Macondo), em que os personagens procuram superar a herança deixada pelo passado escravocrata, apropriando-se da linguagem.
Você se embrenhou pelo romance após anos se dedicando à poesia. Como surgiu essa decisão?
A publicação d’O Ausente é minha estreia na prosa de ficção para o público adulto. Escrevo prosa ensaística e contos para o público infantojuvenil há três décadas. Só me dediquei à escrita d’O Ausente quando entendi que poderia distinguir bem a escrita ficcional do registro etnográfico. Nunca tive a intenção de reproduzir os fatos que presenciei na pesquisa de campo, mas de criar uma ambiência ficcional centrada numa relação experimental com a linguagem.
O que aproxima O Ausente e Um corpo à deriva?
Esses romances fazem parte de uma trilogia — o terceiro virá em breve — que tem como eixo comum a tentativa do(s) protagonista(s) de compreender uma constelação de experiências vividas num curto período de tempo. A partir daí, as semelhanças entre as narrativas se dissipam e cada uma desenvolve seus próprios labirintos.
Os dois livros acabam tratando do destino, mas os narradores lidam com isso de formas distintas.
As exigências do destino tensionam a vida dos dois narradores. Porém, cada um cria estratégias próprias a fim de recusar as leis da predestinação. Diante das narrativas fragmentadas, eles dobram suas apostas nessa fragmentação. Fazem isso com a intenção de destruir as formas opressivas da linguagem em nome de outras mais porosas ao desejo. Por isso, o acaso insinuado nos discursos atua como um agente irônico que a razão dos narradores elege para recusar o status quo.
Em O Ausente, o narrador Inocêncio conta que nasceu envolto pelo pelico, o que o marcaria como curador. De onde veio essa ideia?
A trama mística das religiosidades populares é fascinante. Durante o tempo em que trabalhei nas áreas rurais de Minas, ouvi muitas histórias sobre pessoas que nasceram empelicadas. Encontrá-las, no entanto, era uma raridade. A herança do empelicado — recebida como dádiva e também como sacrifício — é tratada como um enigma, sobretudo pelas pessoas devotas. Inocêncio vivencia intensamente as ambiguidades decorrentes de sua origem a ponto de vermos nele uma angústia e uma rebeldia que são intrínsecas à condição humana.
“Temos respondido aos agressores usando sua própria linguagem.” A frase de Um corpo à deriva lembra o título de um ensaio de Audre Lorde. Nesse sentido, acha que “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande”?
O que o personagem de Um corpo à deriva disse concorda com Audre Lorde, mas, ao longo da narrativa, ele considera outras possibilidades. Na primeira, ao recusar as ferramentas do opressor, o oprimido tem que criar automaticamente as suas próprias ferramentas. Na segunda, o oprimido assimila e transforma alguns aspectos das ferramentas do opressor. Em seguida, passa a utilizá-las para a sua libertação. Aimé Césaire, poeta da Martinica, reescreveu a peça A tempestade, de Shakespeare, para ressaltar como o personagem Caliban aprendeu por imposição a língua de Próspero e depois a utilizou para voltar-se contra o seu opressor. Os personagens conversam sobre esse difícil jogo de relações com o opressor. E descobrem que a recuperação do sentido da utopia depende muito de sua capacidade de sobreviver às armadilhas dos opressores.
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