Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Precisamos falar sobre aluguel

Medidas de proteção a inquilinos são adotadas ao redor do mundo, mas não no Brasil

16mar2021

Bianca Tavolari, Pedro Rezende Mendonça e Raquel Rolnik

Dezembro de 2020, Los Angeles

No último ano, a formação de movimentos de inquilinos que agregam locatários e locatárias com dificuldades de pagar seus aluguéis se intensificou nos Estados Unidos. De Nova York a Los Angeles, coletivos se reúnem em torno da bandeira “cancel the rents” (“cancele o aluguéis”). As organizações de moradores se reúnem por edifícios e bairros e se articulam em redes municipais e estaduais para reivindicar o congelamento dos valores dos aluguéis, a suspensão de despejos e outras intervenções públicas para mitigar os enormes impactos da pandemia sobre a renda das famílias. A moratória aos despejos aprovada pelo Congresso acabou. Dados do Censo norte-americano indicam a probabilidade de que milhares de pessoas sejam despejadas, especialmente entre os mais pobres, que não conseguem mais pagar seus aluguéis. Se perder o lugar para morar já é tragédia suficiente em meio à pandemia, as informações sobre os locatários inadimplentes presentes nas ações judiciais de despejo atingem outras áreas de suas vidas, como as análises de crédito, seleções para vagas de emprego, além de novos contratos de locação. A nova vulnerabilidade impacta a população negra de maneira mais intensa.

Em dezembro de 2020, a cantora Beyoncé, por meio de sua fundação BeyGOOD e em parceria com a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) decidiu conceder o apoio financeiro de 5 mil dólares por família na iminência do despejo nos Estados Unidos. O gesto alia uma ação filantrópica à denuncia da pouca ação de políticas governamentais nesse campo durante a era Trump.

Janeiro de 2021, Buenos Aires

Com a virada do ano, o governo argentino formalizou a declaração de emergência pública em razão do aumento no número de casos de infecções pelo novo coronavírus no país. Por meio do Decreto n.66/2021, Alberto Fernández e seus ministros anunciaram a prorrogação da duração dos contratos de aluguel residencial, a suspensão de despejos e o congelamento dos preços dos aluguéis. As medidas valem até o final de março para aqueles que alugam apenas uma unidade residencial. O governo também criou uma instância de mediação para negociar dívidas de aluguel entre proprietários e locatários. A proposta veio a partir de forte mobilização da sociedade civil. O coletivo Inquilinos Agrupados foi uma das formas de organização de atingidos, formado para resistir aos abusos imobiliários e mudar a assimetria de poder de negociação por meio de assessoramento e ações estratégicas. No twitter, a hashtag #NosQuedamos marca a campanha pela aprovação do decreto de regulação dos aluguéis e pelos protestos dos inquilinos organizados. Em um deles, colchões, sofás e vasos de planta foram trazidos à Praça de Mayo, em frente à Casa Rosada, para dar visibilidade ao desespero daqueles que não podem mais pagar seus aluguéis.

Fevereiro de 2021, Barcelona

Em seu twitter, a prefeita Ada Colau cobrou o presidente do governo, Pedro Sánchez, para atuar na regulação do aluguel: “Presidente, cumpra sua palavra”. Com mais de 3 mil curtidas, a mensagem lembrava que, já em 2017, o presidente havia se comprometido a propor uma iniciativa específica para os aluguéis e que, em 2019, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) firmou um acordo com a Unidas Podemos – coligação eleitoral formada pelo Podemos, Esquerda Unida e outros partidos de esquerda – que incluía a medida. Em novembro do ano passado, a Unidade Antidespejos da Prefeitura de Barcelona divulgou que havia ocorrido 443 ordens judiciais de despejo em menos de três meses, afetando 1.211 pessoas – sendo 463 delas menores de idade. Colau alerta para uma crise habitacional sem precedentes, em uma cidade que tem um dos aluguéis mais altos da Espanha.

Em Barcelona, movimentos em torno do controle dos aluguéis – legislação de competência federal – crescem em torno do Sindicat des llogateres. A organização, que já atuava desde antes da pandemia, denunciando e enfrentando o boom da alta dos preços dos aluguéis, mobiliza, organiza e assessora inquilinos em dificuldades, propondo e pressionando pela aprovação de medidas de regulação e suspensão de despejos.

Brasil

O aluguel residencial está no centro da crise no mundo todo. A impossibilidade de arcar com os valores dos aluguéis, estabelecidos em contratos firmados antes da pandemia, adiciona mais uma camada às vulnerabilidades habitacionais previamente existentes, ampliando o fosso da desigualdade entre quem tem um espaço seguro para se isolar e quem vive à sombra da ameaça de despejo.

Ao contrário de outros países que adotaram medidas de proteção a inquilinos e inquilinas, o Brasil não atuou para mitigar a situação de quem aluga, formal ou informalmente, um apartamento ou casa para morar. Houve um ensaio de discussão no Projeto de Lei n.1179/2020, que estabeleceu o regime jurídico emergencial e transitório de direito privado. A proposta foi desidratada no Senado e a lei aprovada garantiu apenas o impedimento de decisões liminares em ações de despejo entre 10 de junho e 30 de outubro.

A campanha Despejo Zero estima que, entre 1º de março e 8 de outubro de 2020, mais de 6.532 famílias foram removidas de seus imóveis durante a pandemia no Brasil e que outras 54.303 estão ameaçadas de remoção. O Observatório de Remoções estima que pelo menos 2.470 famílias foram removidas apenas na Região Metropolitana de São Paulo. Em ambos os levantamentos, o registro abrange apenas remoções coletivas, como reintegrações de posse e remoções administrativas. Em outras palavras, isto não inclui os domicílios que foram objeto de despejos individuais. Mapear os despejos por falta de pagamento de aluguel é uma tarefa difícil, já que estamos diante de relações fragmentadas e de contratos individualizados entre inquilinos e proprietários, por vezes – mas não sempre – intermediados por imobiliárias. Dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos ajudam a entender melhor este cenário.

Quando analisamos as sentenças proferidas por juízes e juízas da primeira instância em ações de despejo no ano de 2020, é possível perceber que o Judiciário não parou de conceder remoções em casos de falta de pagamento de aluguel durante a pandemia. Distribuídas ao longo do ano, as sentenças favoráveis aos despejos tiveram uma queda acentuada a partir de março, quando as atividades do Judiciário foram temporariamente interrompidas. Voltaram a subir em junho, período que corresponde à reorganização do trabalho de magistrados e magistradas em home office. Entre junho e novembro, foram mais de oitocentas sentenças favoráveis por mês, apenas na Região Metropolitana de São Paulo. Nessa região, as sentenças favoráveis ao despejo somam 9.659 em todo o ano de 2020, 77,4% do total. É importante mencionar que estes dados se referem a aluguéis residenciais e também comerciais. As sentenças dificilmente fazem referência ao uso dado ao imóvel, o que prejudica a distinção consistente entre residencial e comercial por meio dos métodos de busca de expressões regulares de análise de texto de decisões judiciais.

Se comparamos com a média de sentenças dos últimos anos (2017 a 2019), o ano de 2020 mostra números mais baixos, com exceção de janeiro, novembro e dezembro. Uma das possíveis hipóteses é o fato de que o acesso à justiça foi dificultado em meio à pandemia, seja pelos problemas de acesso digital ou mesmo pela priorização de casos urgentes por parte da Defensoria Pública, por exemplo.

Além disso, é preciso mencionar que estamos falando de sentenças, ou seja, decisões finais em ações de despejo. Isso significa que estamos vendo apenas uma parte dos despejos que aconteceram de fato em São Paulo pela via judicial, já que também podem ser determinados por decisões liminares.

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Além disso, os dados mostram uma dimensão contraintuitiva. Quando olhamos para a argumentação de juízes e juízas, apenas 4,63% – 578 em 12.478 – fazem referência à pandemia em suas argumentações. Para fazer está análise, montamos um vocabulário de expressões regulares para indicar a pandemia a partir de uma amostra aleatória de decisões em ações de despejo extraídas manualmente do Diário Oficial de Justiça. Este é o primeiro ponto que salta aos olhos: a vasta maioria das decisões simplesmente ignora a crise sanitária, seguindo com os despejos como se nada houvesse.

Poderíamos pensar que aquele pequeno grupo de decisões que ao menos atestam que há uma pandemia em curso representaria um conjunto mais sensível aos direitos e à realidade de locatários e locatárias. O gráfico abaixo mostra o contrário: 65% das decisões que se referem à pandemia decidem a favor do despejo. Há casos em que a audiência para ouvir as partes é cancelada em razão da pandemia, mas o despejo, não. Há outros em que a referência à pandemia serve apenas para indicar que o juiz ou a juíza estão em trabalho remoto. Há ainda aqueles que afirmam expressamente que a pandemia não muda nenhuma das regras do jogo válidas anteriormente.

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Este universo de decisões é composto por sentenças proferidas ao longo do ano de 2020. Poderíamos pensar que boa parte destes processos não guarda relação direta com a pandemia, ou seja, que apenas a decisão aconteceu em 2020, mas o caso era anterior. Porém, ao analisar o ano de ajuizamento dos processos, é possível ver que, quando se trata de despejos, o Judiciário é bastante rápido. Estamos diante de um número considerável de processos iniciados e decididos em 2020: somam 5.527, ou 44% do total.

O gráfico abaixo mostra como a fatia correspondente a sentenças de despejo relativas a processos iniciados em 2020 vai aumentando, chegando a mais de 70% nos meses de novembro e dezembro.

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Os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE para 2018 mostram que apenas 17% das famílias brasileiras têm despesa monetária com aluguel residencial. Mas este número vem crescendo e, em alguns municípios, chega a mais de 25% do total de domicílios. No registro dos dados da POF de 2018, quase 50% das 11,7 milhões de famílias que pagam aluguel têm renda familiar total de até três salários-mínimos

É neste contexto de grandes impactos sociais da crise sanitária que emergem movimentos da sociedade civil que se organizam em torno da suspensão de despejos, como a campanha nacional Despejo Zero. Além disso, pela primeira vez desde os anos 1990, quando locatários se organizaram em torno do Movimento de Inquilinos Intranquilos, começam a surgir coletivos tematizando a questão do aluguel, cujo principal exemplo é o Aluguel em Crise, em São Paulo. 

Em momentos de crise como esta, em que ficar em casa é uma questão de vida ou de morte, não é possível proteger o direito à vida sem alterar as normas jurídicas vigentes sobre aluguel. Não é possível, por exemplo, continuar a reajustar os aluguéis residenciais por meio do IGP-M, que teve a maior alta nos últimos dezoito anos em razão do aumento do dólar. Medidas excepcionais de suspensão de despejos e congelamento de aluguéis são necessárias e precisam voltar à mesa.

Pedro Rezende Mendonça é urbanista, integra o grupo de pesquisa do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – LabCidade desde 2015.
Raquel Rolnik é urbanista e professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foi relatora das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada e é autora de Guerra dos Lugares.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).