Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

O quebra-cabeça do Prata

Autora mineira guia o leitor por uma Buenos Aires pouco conhecida, fazendo referências a grandes nomes da literatura argentina

01jul2020

Histórias de cronópios e de famas, publicado pela primeira vez em 1962, não começa com as histórias das pequenas criaturas inventadas pelo escritor argentino Julio Cortázar e que dão título ao livro. Começa com um manual de instruções que se desdobra em vários capítulos. Cortázar nos dá instruções para chorar, subir escadas, ter medo ou para matar formigas em Roma. A própria ideia de um manual de instruções para essas tarefas causa estranhamento. Chorar e ter medo são atividades instintivas que não seguem regras detalhadas; subir escadas parece simples o suficiente para não precisar, literalmente, de um passo a passo; matar formigas em Roma é uma ideia suficientemente disparatada para não ser objeto de nenhum tipo de norma de ambientação. 

Cortázar explora esse incômodo à medida que descreve atividades altamente cotidianas como se fossem pouco habituais, trazendo suas regras internas à tona — nas escadas, é preciso não confundir o pé esquerdo com o pé direito porque ambos se chamam “pé”; no choro, é preciso tapar o rosto com as mãos, mas as crianças costumam fazê-lo com as mangas do casaco. A descrição minuciosa coloca esses atos aparentemente tão espontâneos em um plano de dissociação que nos faz abrir um sorriso pela perspectiva inusitada. 

O novo livro da mineira Flávia Péret se chama Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças, lançado em edição bilíngue, em português e espanhol, com tradução de Paloma Vidal. Além da ideia de estabelecer um conjunto de orientações, o título também chama atenção pelo verbo escolhido — montar. Leitores atentos perceberão que não se montam mapas nem cidades. É possível desenhar ou criar mapas; conceber, planejar ou imaginar cidades. Mas nenhum deles funciona a partir de um conjunto de peças prévias que devem ser sobrepostas de uma maneira específica. Apenas quebra-cabeças são de fato montados — e a montagem é tão intuitiva que não precisaria de uma receita a ser seguida. Péret já anuncia no título que vai olhar para as cidades e os mapas como se fossem jogos de armar, daqueles que são acompanhados por folhetinhos de instruções.

Turista profissional

Por mais que o título fale de cidades no plural, Buenos Aires é a protagonista. O livro é composto por fragmentos, como um diário de viagem que traz anotações e lembranças encadeadas de maneira não linear ou como peças de um quebra-cabeça que não se encaixam de imediato. Péret nos leva para dentro do restaurante onde trabalhou como garçonete, por espaços urbanos que consolidam a memória da ditadura, pela paisagem vista da janela do ônibus que pega diariamente, pelas histórias de trabalhadores e trabalhadoras na capital argentina. É uma perspectiva que atua nas frestas dos guias de viagem. E, justamente por desafiar boa parte das imagens preconcebidas de Buenos Aires — do tango ao vinho, passando pelo doce de leite e pelo futebol —, exige um acompanhamento de instruções.

O olhar aberto ao espanto e à descoberta é o oposto daquele do turista profissional, que vive em um “ambiente climatizado”: “como turista profissional que é, sabe direcionar seu smartphone para os cartões-postais oficiais. O turista profissional organiza de forma bastante profissional sua viagem. De dia, o turista profissional caminha bastante: Obelisco, Casa Rosada, Bosques de Palermo, Caminito, Delta do Rio Tigre, Cemitério da Recoleta, Teatro Colón, La Bombonera, Praça Dorrego, Museu de Belas-Artes, Feira de Artesanato de San Telmo”, escreve ela. “Volta para o Brasil com a mala cheia de compras e continua sem saber onde fica Lomas de Zamora.”

Péret já anuncia no título que vai olhar para as cidades e os mapas como se fossem jogos de armar

O turista profissional é aquele que busca a experiência de uma cidade imaginada nos guias turísticos, que visita como quem risca itens em uma lista, com um olhar treinado para reconhecer aquilo que já esperava encontrar. Não visita Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, onde mora Matías, que lava a louça do restaurante onde trabalhou Péret, e onde fica a escola de Cecilia e Fernanda, com quem a autora cruzou na cidade. 

O turista profissional tampouco conhece as arquiteturas coletivas da Villa 31, a maior favela portenha, por mais próximas que estejam do bairro da Recoleta. Seria, certamente, um “fama” — uma das criaturas imaginárias de Cortázar —, que planeja e segue os caminhos da sociabilidade de modo convencional, carregando a pretensão da formalidade, em contraposição direta aos “cronópios”.

As experiências de Péret em Buenos Aires são apresentadas alinhavando pontos de conexão com grandes referências da literatura argentina. Cortázar está por todos os lados, não só na intertextualidade do título. Há um capítulo chamado “Casa tomada”, em alusão clara ao conto de mesmo nome de Bestiário. Alguns capítulos evocam as pichações nos muros das ruas, em um possível diálogo com um dos contos do escritor, em que os personagens se comunicam por grafites nas paredes de uma cidade sob o signo do autoritarismo. Também há imagens de Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia e Rodolfo Walsh. O mapa da província, que reproduz os detalhes à perfeição e, assim, acaba por ocupar a cidade toda, é um dos motes, em referência expressa ao conto “Sobre o rigor da ciência”, de Borges.

Um manual de instruções para enxergar além da paisagem considerada importante de ser vista, para olhar para as experiências de quem não cabe nos lugares que a maioria das pessoas visita e para a dimensão histórica do terrorismo de Estado que se faz ver no espaço urbano da capital argentina. Péret talvez não pudesse imaginar que o livro, cujo lançamento foi adiado por causa da pandemia (é possível obter informações sobre a obra e ler uma prévia no site guaya.bo/cidades), abriria uma janela para uma visita impossível a Buenos Aires. Ou que a própria ideia de um manual de instruções deixasse de se tornar despropositada para tempos em que são as próprias referências de espaço urbano e sociabilidade que passam a se desestabilizar. Vamos precisar de instruções para chorar, para subir escadas e, sobretudo, para montar cidades.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).