Flip, Poesia,

Paella, poema inédito de Patrícia Lino

Convidada da Flip 2022, a poeta portuguesa compartilha um novo escrito

22nov2022

Paella

Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo
que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos 
de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou 
depois de o marido morrer há cinco compridos anos
e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita 
poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram
mais do que os romancistas, os poetas, que lançam
como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera
não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse 
valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações
totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz 
o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas
o contrário do que todas as pessoas acham que ela é 
como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes
e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos 
e pergunta:

— Achas que vale a pena escrever um livro de poemas?

Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão
vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu
de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses
por uma amiga de infância, e como gostou também 
e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu
por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa
vertical e branca, furando discretamente o movimento 
da própria continuidade, materializando, desse modo
a palavra, tão robusta como um martelo especulativo
tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso
aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo
grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande
o que é exatamente o canto grande senão a insistência
em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra 
sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira
e responde:

— Acho que não. Já há muitos.

Quem escreveu esse texto

Patrícia Lino