Literatura,

Assim estava traduzido

Nunca se traduziu tanta literatura árabe para o português, e Safa Jubran é uma das principais figuras desse fenômeno

26abr2021

No começo de março, o Prêmio Internacional de Ficção Árabe (Ipaf) anunciou os indicados para o seu troféu. Um dos momentos mais importantes do ano para quem acompanha a literatura árabe. No Brasil, no entanto, a lista dos jurados chamou ainda mais a atenção do que o nome dos escritores. Estava lá um personagem inesperado: a brasileira Safa Jubran, professora da Universidade de São Paulo (USP).

Inesperado, mas nem tanto. Nesta última década, afinal, o Brasil tem se aproximado do mundo árabe. Não graças a políticas públicas nem a acordos comerciais, e sim graças à cultura. Uma evidência disso é o fato de que nunca se traduziu tanta literatura do árabe para o português.

Jubran é um dos eixos desse movimento, construindo uma ponte de livros entre Brasil e países de cultura árabe como Líbano, Egito e Sudão. Em reconhecimento a esse papel, a professora recebeu em 2019 o prêmio Sheikh Hamad de Tradução e Entendimento Internacional, que é entregue pelo governo do Qatar.

Jubran chegou ao Brasil em 1982, aos vinte anos, durante a guerra civil que assolava seu Líbano natal. Ela vinha da pequena cidade de Marjayoun, próxima à fronteira com a Síria e Israel. Aprendeu português, estudou na usp, fez mestrado, doutorado e virou professora de árabe. Ela é uma figura já mítica nos corredores daquela universidade. Faz questão de alfabetizar os novos alunos. É um dos motivos pelos quais muitos, este autor incluso, aprenderam a língua árabe.

São aulas de muito suor, em que estudantes repetem os sons guturais sem equivalente no português. A ham- za é produzida por um golpe da garganta fechando e soltando ar. O ghayn, por um arranhar no fundo da boca. O dad, por um “d” pronunciado com força, quase engasgando. E, quando alguém se esquece de uma vogal longa, Jubran faz com que escreva uma mesma palavra dezenas de vezes até nunca mais cometer o erro. Foi o caso deste mesmo autor, que outrora cometeu o deslize de escrever “jamia” em vez de “jaamia”, que quer dizer universidade. 

Para a ficção árabe se popularizar é preciso deixar de tratá-la como algo a ser lido para entender um mundo distante

Ao lado de outros professores da USP— Mamede Jarouche, Miguel Attie Filho e Michel Sleiman —, Jubran traduziu para o português quase tudo o que saiu em árabe nesta última década. Havia uma espécie de divisão entre eles. Jubran cuidava da literatura contemporânea, Jarouche traduzia a medieval, Attie ficava com a filosofia e Sleiman se lançava sobre a poesia.

A princípio, esses lançamentos saíam a conta-gotas. A editora Record chegou a publicar obras como Yalo: o filho da guerra (2012), do libanês Elias Khoury, e Azazel (2015), do egípcio Youssef Ziedan. Já a Companhia das Letras lançou E nós cobrimos seus olhos (2013), do egípcio Alaa Al Aswany. Mas, às vezes, tão mirrado era o mercado que clássicos — como a obra do egípcio Naguib Mahfouz, o único árabe a receber o Nobel de Literatura — esgotavam, não ganhavam novas edições e iam parar nos catálogos de livros raros nos sebos. Outro clássico, Tempo de migrar para o norte, do sudanês Tayeb Salih, só voltou a circular em português porque o clube de leitura TAG o reeditou em 2018.

Novo cenário

O cenário agora é outro. Editoras têm publicado, mês a mês, livros de diferentes autores, gêneros e períodos. Por exemplo, em 2020, saiu o romance Correio noturno, da libanesa Hoda Barakat, assim como os textos de prosa poética Da presença da ausência, do palestino Mahmud Darwich — ambos foram, inclusive, resenhados em edições anteriores da Quatro Cinco Um. Saiu até mesmo, em fevereiro, Os miseráveis, um manuscrito clássico do século 9, do iraquiano Aljâhiz, disponível para download gratuito pelo Sesc Digital em parceria com o Instituto Mojo de Comunicação Intercultural. Há diversos outros títulos na esteira de produção para os próximos meses, ainda sem anúncio oficial.

Não existe uma justificativa única para essa guinada rumo ao árabe, depois de décadas rarefeitas. O trabalho de Jubran, feito nas poucas horas em que não lecionava ou se dedicava a outras tarefas da vida universitária, foi certamente uma fagulha antes da feliz explosão. Mas pesaram também os esforços de uma série de pequenas editoras nacionais que recentemente decidiram investir na ficção árabe. A Carambaia, por exemplo, lançou em março O sussurro das estrelas, de Naguib Mahfouz, e a Moinhos publicou no ano passado o premiado Damas da lua, da omani Jokha Alharthi.

“Antes eram só as grandes editoras que me procuravam”, Jubran afirma. “Agora, não. Editoras pequenas estão fazendo seleções interessantes, trazendo ao Brasil não só as coisas que têm destaque lá fora, que ganharam prêmios em festivais. E existe uma relação mais próxima com o tradutor; há um trato mais direto.” As traduções saem mais rapidamente, também. Em outros períodos, os textos às vezes passavam anos na gaveta das editoras, antes de chegar às mãos dos leitores.

Dentre essas pequenas editoras, o destaque é a Tabla, que foi fundada em 2020 justamente com o projeto de publicar mais traduções do árabe. Por trás dessa casa, Laura di Pietro e Ana Cartaxo procuraram Jubran quando decidiram lançar traduções do idioma. A professora trouxe consigo um time de jovens tradutores com quem vinha trabalhando na USP, dentro do grupo de pesquisa Tarjama (palavra que justamente significa “tradução”). Gente como Jemima Alves, Felipe Benjamin e Marco Calil. Formou-se, assim, uma nova geração de nomes. Se há dez anos um aluno entrava no curso de letras talvez sem muita perspectiva de ter trabalho, hoje o seu conhecimento da língua árabe começa a se transformar no que deveria ter sido: uma vantagem no mercado de tradução, uma habilidade valorizada por editoras à procura de talentos.

Mesmo com tantos bons sinais, Jubran é cautelosa em celebrar os avanços recentes. “O cenário é muito bom? Não”, ela diz, discordando do otimismo do repórter. “Mas é que não tinha quase nada antes.” Entre Jubran ganhar o prêmio no Qatar, a Tabla aparecer e ela integrar o júri do prêmio foi questão de dois anos, só. “A partir daí, foi uma loucura”, ela conta. Para chegar aos finalistas indicados em março, Jubran leu 121 romances árabes em questão de seis meses.

Desses livros, apenas seis chegaram à final: The Eye of Hammurabi (O olho de Hammurabi), do argelino Abdulatif Ould Abdullah; Notebooks of the Bookshop Keeper (Cadernos do guardião da livraria), do jordaniano Jalal Bargas; The Calamity of the Nobility (A calamidade da nobreza), da tunisiana Amira Ghenim; The Bird Tattoo (A tatuagem de pássaro), da iraquiana Dunya Mikhail; File 42 (Arquivo 42), do marroquino Abdelmajid Sebbata; e Longing for the Woman Next Door (Saudade da mulher da casa ao lado), do tunisiano Habib Selmi.

Cânone universal

Durante a entrevista a esta reportagem, a sempre sorridente Jubran corre à sua estante para buscar livros para mostrar pela câmera de vídeo, orgulhosa do trabalho dos outros. Fala com empolgação sobre os romances distópicos iraquianos, argelinos e tunisianos que tem devorado. Fala também sobre o gênero policial, com tantas boas obras nessa safra. Passa os dedos pelas capas, pelas lombadas. Lamenta que, não importa quanto trabalhe e quanto o mercado melhore, tanta coisa vai continuar inacessível para quem não embarcar no longo aprendizado da língua. Um idioma semítico aparentado do hebraico, o árabe é tão distante do português e com um vocabulário tão, tão único que um aluno leva muitos anos até por fim ser capaz de ler um bom romance na língua original.

A professora é cuidadosa, também, quanto à ideia de que esse fenômeno de tradução do árabe — ou o fato de que há mais títulos do que alguns anos atrás — signifique que esses livros entraram para o cânone universal. A ficção árabe ainda não chegou ao status de outras literaturas. Ela dá o exemplo do colombiano Gabriel García Márquez, tido como representante da literatura com “L” maiúsculo. O que García Márquez escreve sobre o Caribe é visto como uma lição sobre a humanidade. O que um árabe escreve, no entanto, é visto como algo sobre árabes, e apenas eles.

“A solução não é só aumentar o número de traduções”, diz. O caminho para a ficção árabe de fato se popularizar, sugere, é deixar de tratar a literatura árabe como um gênero antropológico, uma coisa a ser lida para entender um mundo distante. “A ficção árabe ainda é vista como literatura étnica, e precisamos superar isso.”

O caminho passa, de alguma maneira, pelas escolas e pelas universidades brasileiras. Os livros precisam ser lidos, estudados e criticados para se tornarem universais. Jubran cita uma promissora tese de doutorado que está orientando na usp sobre a literatura iraquiana pós-colonial. Algo que seria raro há alguns anos por ali. A aluna, Jemima Alves, trabalha diretamente com os textos em árabe — escritos da direita para a esquerda, quase sem vogais. Outro dos alunos de Jubran, Felipe Benjamin, graduou-se com um estudo sobre um romance libanês e agora pesquisa a linguística de um dialeto específico do sul do Marrocos. 

Esse fenômeno todo parece ter seu equivalente do outro lado da equação, no Oriente Médio. Escritores brasileiros de origem libanesa ganharam traduções de seus livros para o árabe. Jubran traduziu Dois irmãos, de Milton Hatoum, e Jarouche verteu Um copo de cólera, de Raduan Nassar, para a língua de seus antepassados. Saiu também uma antologia de escritores brasileiros em árabe, incluindo Marcelo Maluf, autor do romance A imensidão íntima dos carneiros.

Com isso, os professores da USP fincaram o Brasil ainda mais fundo como uma parte importante da cultura médio-oriental, em uma nova relação entre as regiões do Sul global. Mesmo autores sem ascendência árabe, como Marta Batalha, já circulam por lá — em 2019, Jubran traduziu A vida invisível de Eurídice Gusmão para a editora Dar al-Adab, uma das mais importantes do mundo de cultura árabe. “Vai mudar amanhã o cenário? Não. Mas são mais algumas pedrinhas que estamos empilhando.”

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

Jornalista, publicou Rasga-Mortalhas (Zarabatana, 2016).