Literatura,

‘A morte’

Um conto inédito de Lygia Fagundes Telles

01maio2022

Vou lhe contar meu sonho, um sonho tão bonito e que me fez tanto bem que não resisto ao impulso de passá-lo adiante, na esperança de que traga a alguém a metade — ao menos a metade! — da paz que me trouxe. Mas antes você vai me prometer que não procurará realizar aqui suas altas interpretações freudianas, não, nada disso, eu lhe peço, nada de complicar com simbolismos o que foi tão claro, tão nítido. Afinal, o que há de mais belo na vida — na vida e na morte — é o mistério. Desgosta-me essa preocupação constante de se racionalizar realidade e sonho, deixemos de lado as lúcidas análises, quando eu digo nuvem, é nuvem mesmo. Quando eu digo montanha, é montanha mesmo e não outra coisa. Fiquemos apenas na interpretação primária, do entendimento até das criancinhas.

Respirei tomada de uma infinita sensação de alívio como nunca senti igual. Passou, pronto, morri.

Era noite e eu estava num campo que podia ser também um mar. Vi então que uma névoa fria foi subindo do chão ou da água, subindo rápida até meus joelhos, subiu mais e atingiu minha cintura, subiu ainda densa como uma onda e atingiu meu peito, mais um pouco e ei-la na altura do meu pescoço… Fui tomada de pânico, é a morte. Essa névoa é a morte, pensei erguendo angustiosamente a cabeça para fugir daquele denso vapor que eu sabia que ia me sufocar. A angústia foi rapidíssima porque logo a névoa atingiu minha boca, ultrapassou-a, foi além dos olhos… Então respirei tomada de uma infinita sensação de alívio como nunca senti igual. Passou, pronto, morri. Morri! Pensei na maior perplexidade. Mas como era fácil a morte! Como era fácil morrer!… E abri então os olhos deslumbrados para a manhã tão fina e tão leve como nunca tinha visto outra assim. Então era isso?… Tive vontade de rir de alegria, tão feliz me senti, mais leve ainda do que a manhã que me trespassava com sua luz como se eu fosse de vidro. A ansiedade, o medo, a aflição cederam lugar a uma calma tão absoluta que não entendi como pudera ter me afligido tanto antes.

Deitei-me de bruços no alto de uma montanha e fiquei vendo lá embaixo os densos rios que rolavam mansamente. Alguns cruzavam-se com outros e as águas avolumadas subiam então ondulantes contornando a base da montanha e formando em redor dela um imenso anel. Inclinei-me para ver melhor, não, não eram rios de água, eram rios de gente, infinitos rios humanos rolando tranquilos pela eternidade. São os mortos, pensei. São os mortos. 

Nesse instante, de um daqueles rios, destacou-se uma pessoa que veio subindo a montanha na direção onde eu me encontrava. Esperei-a. Ela veio vindo, veio vindo e na metade do caminho vi que era uma mulher. Vestia trajes egípcios. Aproximou-se de mim e já a uns dez passos apenas de distância, parou e ficou me olhando em silêncio. Havia em sua expressão qualquer coisa que me pareceu familiar. Sorriu e de repente vi que aquele sorriso era o meu. Vi que o sorriso era meu e meu aquele rosto me encarava como se eu encarasse um espelho. Anime-me: eu fui você! Exclamei. Um dia, num outro tempo, eu fui você.

Ela concordou, movendo afirmativamente a cabeça. Senti-me então segura, confiante, afinal, tudo não passava de um transformar contínuo, ah! como era simples morrer! E agora? lembrei-me de perguntar-lhe. O que vou ser agora?

Ela teve um sorriso velado, reticente. No fundo do sorriso, uma remota ponta de malícia que me fez sorrir também. Você vai ser, respondeu-me afastando-se lentamente. Espera aí, você vai ver…

Não me dirá nunca, pensei acenando-lhe. Mas não tinha importância, fascinava-me agora o mistério da nova aventura. Vi-a descer a montanha como subira. Quando integrou-se ao rio e nele desapareceu, fiquei assim como uma criança na expectativa. Vou esperar, pensei e esse pensamento foi tão repousante que fechei os olhos e dormi.

Quem escreveu esse texto

Lygia Fagundes Telles

(1923-2022), escritora, ganhou os prêmios Camões (2005) e Jabuti (1966, 1974, 1996, 2001)