Literatura infantojuvenil,

Relendo Anne Frank

No diário da menina judia eu lia a minha solidão de menina negra e pobre e o histórico da identidade massacrada dos povos negros

01out2021 | Edição #50

Acabei de reler O diário de Anne Frank e, desde a primeira página, ressurge edificada a imagem de uma menina judia embaralhada à minha. Ela, a menina escritora de treze anos, e eu, a menina leitora, da mesma idade, em 1959. Li a primeira tradução publicada no Brasil. Eu não sabia nada da questão judaica. Lembro-me apenas de que tinha uma colega judia em nossa sala de aula, o que me permitia imaginar que Anne Frank se parecia com Anita. A autora do diário poderia se assemelhar também à moça Daphine, filha de um casal judeu para o qual havia trabalhado como pequena doméstica quando eu tinha nove anos. Eram esses meus conhecimentos sobre a condição judaica quando li o diário, de uma menina da minha idade.

Não sei precisar como o livro chegou a minhas mãos. Não era da minha pertença, devia ser uma obra de empréstimo da biblioteca do colégio em que estudava ou da biblioteca pública em que uma das minhas tias era servente. Quem me aconselhou a leitura, disso também não me lembro. Entretanto, eu me recordo do impacto que a leitura me causou. Ler o dia a dia de uma menina que corria o risco de morte por ser judia me convocava ao sofrimento junto com ela. Sem ter consciência de que a tragicidade da história judaica, em condições específicas, em eventos históricos peculiares, já havia marcado o destino dos povos africanos, eu, leitora de Anne Frank, me cumpliciava nas angústias dela e do seu povo.

Solidão

Relendo O diário de Anne Frank, experimento uma leitura “3D”, pois me aproprio do texto em três dimensões, em três movimentos diferentes. A primeira dimensão se dá na leitura do texto que me é apresentado hoje, com acréscimos de partes que foram suprimidas na primeira publicação do livro. A segunda se dá em movimentos de rememoração de passagens lidas em 1959 e que vão se insinuando na leitura atual. E a terceira dimensão é a leitura que busco fazer não só do texto, mas do sujeito da leitura, uma jovem leitora de treze anos lendo uma autora da mesma idade. Busco essa terceira dimensão para entender o porquê de a obra ter me convocado tão profundamente, ter se tornado uma memória de leitura jamais esquecida, apesar do decorrer do tempo.

Creio que um dos primeiros aspectos que marcam o texto de Anne Frank — para além da perene ameaça e da constante vulnerabilidade da família Frank e dos demais agregados no Anexo Secreto diante da perseguição ao sujeito judeu — é o drama da solidão humana. Uma solidão vivida ao extremo, aprofundada pelo estado de guerra, mas que é inerente ao ser humano. E com uma perspicácia para além da sua idade: uma menina de treze anos, por meio do relato de seu cotidiano e das demais pessoas de seu entorno, oferece reflexões corajosas sobre a condição humana, vivida na experiência de uma identidade judaica. Identidade essa que justificava para os nazistas perseguir o povo judeu até à morte. Nesse sentido, Anne Frank registra: “Nunca poderemos ser apenas holandeses, ou ingleses, ou de qualquer outra nacionalidade, seremos sempre judeus. E teremos de continuar sendo judeus, mas afinal, vamos querer ser”.

A partir do confinamento planejado para a família e agregados, em condições de perda total de privacidade, Anne Frank executa um movimento contrário à ambiência coletiva e incômoda em que passa a viver. Experimentando a solidão individual sem estar só — pelo contrário, se sentindo sempre perturbada pela presença de outras pessoas —, a menina começa a empreender uma dolorosa busca por autoconhecimento. Busca a si, experimentando sempre o confronto com o outro. Conflitos familiares, diferenças geracionais, carências afetivas, tudo dificulta as relações interpessoais entre os moradores e moradoras da casa. E após exaustivas contendas, sozinha, ela, buscando se compreender, escreve: “Depois durmo com a sensação estranha de que quero ser diferente do que sou, ou de que sou diferente do que quero ser, ou talvez de me comportar diferente do que sou ou do quero ser”.

As pessoas precisam aprender repentinamente a dividir um espaço físico, em situação de um confinamento que não podia ser rompido nem ser alvo de suspeição externa. É nessa ambiência que a mais nova do grupo vai afirmando a sua personalidade, vai se interrogando e questionando o mundo em guerra. Das páginas de O diário de Anne Frank colhemos relatos da crueza da guerra e perguntas sobre quais os sentidos dos confrontos bélicos de um país com outro. A jovem registra que ninguém ainda respondeu o porquê de as nações fabricarem aviões e bombas; ao mesmo tempo que constroem casas, gastam milhões com a guerra, mas não investem o suficiente nas pesquisas médicas e artísticas. Anne Frank, ao indagar sobre os motivos da guerra, ressalta o abandono dos pobres, destaca a existência da fome em certas partes do mundo, enquanto há desperdício de comida em outras. E afirma: “Não acredito que a guerra seja obra apenas de políticos e capitalistas. Ah, não, o homem comum é igualmente culpado […] Há uma necessidade destrutiva nas pessoas, a necessidade de demonstrar fúria, de assassinar e matar”.

Ler o dia a dia de uma menina que corria o risco de morte me convocava ao sofrimento junto com ela

Sendo o diário uma escrita que permite e induz a uma autorreflexão, pelo gesto de escrever o acontecido, o instante-já, deixa que o sujeito da escrita revise e planeje novas atitudes. O diário de Anne Frank traz a vida da menina em crescimento e seu movimento para o futuro. O futuro desejado, sonhado por Anne Frank, era ser jornalista ou escritora. Pequenos contos já eram ensaiados por ela. “No futuro quero ser escritora e, se não puder, quero escrever nas horas vagas.”

Futuro planejado e exercido pela escrita do próprio diário, iniciada no dia 14 de junho de 1942. Anne tratava o seu diário como se fosse uma amiga imaginária, chamada Kitty. Intencionalmente corrigia e preparava a sua escrita para uma publicação pós-guerra, desde o dia em que ouvira o ministro holandês Bolkestein declarar que publicariam memórias escritas do período do conflito mundial.

Anne Frank assim registra no dia 24 de março de 1944:

Querida Kitty,
O ministro Bolkestein, […] declarou que depois da guerra farão uma coletânea de diários e cartas que falem da guerra. Claro que todo mundo se lembrou do meu diário. Imagine como seria interessante se eu publicasse um romance sobre o Anexo Secreto. Só o título faria as pessoas acharem que é uma história de detetives.
Sério, dez anos depois da guerra, as pessoas achariam muito interessante ler sobre como nós vivemos, o que comemos e sobre o que falamos como judeus escondidos.

Hoje, relendo e revendo a mim menina lendo outra menina, entendo o porquê de a escrita de Anne Frank ter me afetado tanto, a ponto de me convidar a escrever um diário, escrita que se perdeu ao longo dos tempos. O diário da menina judia em muitos aspectos estava escrito em mim, assim como o Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, estava inscrito em Joana Josefina Evaristo, minha mãe, se tornando um ato convidativo para que ela escrevesse também o seu cotidiano vivido em Belo Horizonte.

Em O diário de Anne Frank, eu lia também a minha solidão de menina negra e pobre, as minhas dúvidas da adolescência, o histórico da identidade massacrada dos povos negros, a memória histórica da colonização e de escravização dos povos africanos, a experiência do sofrimento do racismo. E mais: como para Anne Frank, a leitura e a escrita eram o esteio, a fuga e a permanência, as armas que me permitiam enfrentar o mundo. E como Anne Frank eu pedia outro futuro, que eu nem sabia qual, mas que não poderia ser igual aos dias do presente que eu vivia. Entretanto, lamento por ela, a escritora menina, que o mundo adulto não deixou viver, pelo fato de ser uma pessoa judia.

Digo também que estamos em dias vazios de humanos sentimentos. A leitura de O diário de Anne Frank se faz necessária mais e mais nestes tempos em que a brutalidade e a prepotência de pessoas e de grupos imperam buscando se colocar como donos do mundo.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Conceição Evaristo

Escritora, publicou Poemas da recordação e outros movimentos (Malê).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.