Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Encarcerar até o vírus

Decisões judiciais ignoram os efeitos da Covid-19 na população prisional

01jul2020

Preso por tráfico de drogas desde 2016 e portador de HIV, Luis (todos os nomes foram alterados para preservar a identidade das pessoas mencionadas) já cumpria pena em regime semiaberto quando teve seu pedido de prisão domiciliar negado. O pedido estava baseado na Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que visa conter a propagação da Covid-19 nas instituições prisionais. De acordo com a recomendação, Luis está entre as pessoas que poderiam deixar a prisão tanto por integrar grupo de risco quanto por cumprir pena em regime semiaberto. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no entanto, não concedeu o pedido por duas razões: Luis “não comprovou que esteja privado dos cuidados necessários na unidade prisional” e “não há risco concreto, no presídio onde se encontra, maior do que aquele suportado pela sociedade, de contrair Covid-19”.

Como ele, milhares de pessoas em privação de liberdade — majoritariamente negros, jovens e de periferias — tiveram seus pedidos de habeas corpus negados pela Justiça paulista desde o início da pandemia. Analisamos todas as decisões do TJSP em ações desse tipo que mencionavam a Covid-19. Em 88% dos 6.781 casos, o pedido foi negado, independentemente de citarem a Recomendação 62/2020 (publicada em 17 de março) ou de alegarem pertencimento a grupo de risco. O baixo número de solturas não surpreende. Revela que o TJSP, apesar da pandemia, permanece funcionando no “velho normal”: a prisão é vista como parte da solução, não do problema.

A decisão no caso de Luis escancara o descaso em relação à vida das pessoas privadas de liberdade. O número de vagas disponíveis nas 176 instituições prisionais paulistas não é sequer considerado pelo Judiciário na hora de prender ou manter a pessoa presa. A taxa de ocupação está em torno de 150%, de acordo com os dados oficiais. O TJSP não informa em que unidade Luis está preso, mas se for na penitenciária da cidade onde tramita seu processo, segundo a própria Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), ele está mantido com outras 1.841 pessoas em uma unidade com 865 vagas. Mas a taxa de ocupação diz pouco sobre as condições de vida em prisões, sistematicamente denunciadas pela Defensoria Pública e pela sociedade civil. 

A Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo tem publicado notas sobre “a grave situação do sistema prisional em meio à pandemia”. Com outras entidades, pediu providências urgentes à sap diante dos “relatos de familiares sobre denúncias de tortura, maus-tratos e negativas de direitos básicos em unidades prisionais paulistas”. Entre as dezessete unidades mencionadas nas denúncias, está a de Luis — há chances de ele ter contraído HIV no sistema prisional. Como no caso da tuberculose e hepatites B e C, o risco de contágio de doenças infecciosas é de duas a dez vezes maior no interior das prisões do que fora delas, dado amplamente documentado pela comunidade científica.

Uma decisão judicial equiparou o coronavírus e a pessoa em privação de liberdade

A análise de amostra aleatória de 371 decisões identificou que 25% delas se referem a casos em que houve alegação de pertencimento a grupo de risco — doenças respiratórias, maiores de sessenta anos, hipertensão e diabetes foram as causas mais frequentes. Há seis casos de HIV, além de situações envolvendo cardiopatia, câncer, hepatite C, toxoplasmose e lepra. Nesses 95 casos, o TJSP autorizou apenas cinco a sair da prisão. Entre eles está Roberto, idoso e com saúde debilitada, que cumpria pena em regime aberto, quando foi preso novamente em dezembro de 2019. Ele passou ao menos quatro meses preso em uma unidade de detenção provisória que também funciona acima da capacidade antes de ter seu pedido deferido pelo Tribunal. Foi a única pessoa com mais de sessenta anos autorizada a sair da prisão dentre os casos analisados. 

Os resultados se comunicam com o estudo da Defensoria Pública de São Paulo que analisou mais de 35 mil processos de pessoas que se enquadrariam nos critérios da Recomendação 62, sendo que apenas 783 saíram da prisão. O quadro sugere que os números divulgados pela sap podem estar mais relacionados à movimentação normal dentro do sistema prisional do que como resposta direta à pandemia. Mais do que isso, aponta para o velho problema de obter dados confiáveis em âmbito estadual e federal. O problema tem se agravado na pandemia e levou à criação do Infovírus, observatório sobre a Covid-19 nas prisões pelo país. 

Resfriado

É possível ver duas reações distintas dentro da Justiça paulista pelos casos de Marcos e Antonio: a exceção e a regra. Marcos foi condenado por tráfico a quatro anos e dez meses, iniciou o cumprimento de pena no regime fechado e já havia progredido para o semiaberto quando o TJSP autorizou que deixasse o Centro de Detenção Provisória de Guarulhos, estabelecimento também superlotado. O Tribunal determinou que Marcos fosse para prisão domiciliar pelas “razões de ordem humanitária estabelecidas pelo cnj”. Uma decisão excepcional, que não ignora as proporções avassaladoras da Covid-19 no ambiente prisional. 

Mas a regra é Antonio. Ele também foi preso por tráfico, mas teve seu pedido negado. Argumentava ser dependente químico e pedia a liberdade provisória diante do risco de contrair Covid-19 na prisão. Além de negar o pedido, o desembargador que relatava o caso não poupou críticas ao seu comportamento “reprovável”: não só por ter traficado drogas, mas também por ser dependente químico, o que o levaria a não ter controle sobre suas próprias atitudes. Na argumentação, a sociedade aparece reagindo “enfaticamente” à Covid-19 que “supostamente não provoca na maioria dos jovens infectados mais do que os sintomas de um simples resfriado”. 

Além de fazer julgamento pessoal sobre a condição de dependente químico de Antonio, a decisão equipara o vírus e a pessoa em privação de liberdade. “O vírus liberto é perigoso, e, como não dá para prendê-lo, prendemo-nos nós. O traficante livre também é perigoso, mas dele podemos nos ver livres desde que o prendamos ou o mantenhamos preso, ainda que por um período que o faça refletir sobre a gravidade do que fizera.” Rende-se diante do vírus, mas se revela implacável na eliminação da pessoa.  

No caso de Marcos, a decisão parece mostrar que a gravidade da crise — e o próprio CNJ — pode ser levada a sério pelo tjsp. Mas a regra segue a do caso de Antonio: a pandemia ainda é gripe, e a vida da pessoa presa não vale nada.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Maíra Rocha Machado

 Professora Associada na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Natalia Pires de Vasconcelos

É professora do Insper.